Evandro Ferreira
Blog Ambiente Acreano
Nos últimos dez anos um tema tem causado
controvérsia no meio acadêmico. Alguns cientistas defendem que as
florestas tropicais não são tão virgens como se pensa porque habitantes
ancestrais já manejaram extensas áreas dessas florestas, moldando-as
para atender suas necessidades. Algumas espécies consideradas nativas
são reputadas por esses pesquisadores como intrusas. E uma das mais
suspeitas de ter sido introduzida em nossas florestas é a nossa
castanheira (Bertholletia excelsa).
Dentre vários artigos acadêmicos que suportam essa linha de pensamento,
vale a pena conhecer um deles, publicado por K. J.Willis, L. Gillson e
T. M. Brncic, da Universidade de Oxford, na renomada revista Science em
abril de 2004. Seu título é bem instigante: “Quão virgem é a floresta
virgem?”.
Segundo os autores, dados arqueológicos e paleocológicos sugerem que as
‘florestas virgens’ não são tão ‘virgens’ como se pensava anteriormente e
passaram por modificações substanciais. Nas três grandes regiões de
florestas tropicais do planeta localizadas na Amazônia, na bacia do rio
Congo, na África, e na região Indo-Malaia do Sudoeste Asiático, vários
estudos sugerem que atividades humanas pré-históricas foram mais
extensivas do que se pensava anteriormente.
Na Amazônia, os solos mais férteis são aqueles conhecidos como ‘terra
preta de índio’, formados desde 2,5 mil anos atrás via realização de
queimadas e atividades agrícolas, estimando-se em 50 mil hectares a área
desses solos na região. Evidências arqueológicas do alto rio Xingu
indicam que vários assentamentos humanos existiam naquela região entre
os anos 1250 e 1600, cada um deles ocupando 40 a 80 hectares e com
densidade populacional de 6 e 12,5 pessoas/km². Eles integravam um
complexo regional e sugerem que seus habitantes promoveram um manejo e
desenvolvimento intensivo da paisagem que resultou na transformação de
extensas áreas florestais em áreas agrícolas. O abandono da região,
depois de uma catastrófica diminuição da população entre os anos 1600 e
1700, resultou em um extensivo processo de reflorestamento natural. Por
essa razão, atualmente a região do alto Xingu abriga a maior mancha de
floresta contínua na periferia sul da Amazônia.
Dados arqueológicos e paleoecológicos também revelam história similar
na bacia do rio Congo, onde numerosos achados de ferramentas de pedra,
sementes de dendê, traços de carvão no subsolo, resquícios de cultivos
ancestrais de banana e cacos cerâmicos levaram os pesquisadores a
concluir que a maior parte daquela região, hoje coberta por uma densa
floresta, foi extensivamente habitada no passado. Parte da floresta foi
derrubada e a prática de agricultura data de cerca de 3 mil anos atrás. O
fim desse processo ocorreu há 1,6 mil anos, depois de uma catastrófica
diminuição da população humana na região.
Na África Central ocidental existem evidências arqueológicas de fornos
usados para trabalhar o ferro que datam de 650 AC. Esta atividade deve
ter tido um sério impacto na floresta pois requeria a extração de
madeira para a produção do carvão usado no derretimento do ferro. O
desaparecimento das populações humanas em partes dessa região no século V
resultou no abandono das áreas alteradas e em um extensivo processo de
regeneração da floresta. Hoje, em algumas áreas consideras como de
‘florestas virgens’, ainda é possível observar a regeneração secundária
da floresta.
Nas florestas tropicais da região Indo-Malaia existem evidências
pré-históricas ainda mais antigas. Dados arqueológicos e paleobotânicos
sugerem que a agricultura – incluindo o cultivo de banana – se
estabeleceu em Papua-Nova Guiné há cerca de 7 mil anos e que florestas
tropicais na Tailândia eram manejadas desde 8 mil anos atrás. Nas ilhas
Salomão, a população de Nova Geórgia era, em 1800, o dobro da atual,
indicando que as florestas contemporâneas aparentemente intocadas dessa
ilha talvez tenham sido formadas por regeneração natural nos últimos 150
anos, depois do declínio da população e a emigração dos habitantes das
regiões costeiras. A grande riqueza de espécies secundárias encontrada
nas florestas primárias da ilha dá suporte adicional a essa teoria.
Além do interesse histórico nas florestas tropicais e como os humanos as
alteraram, os estudos arqueológicos, paleocológicos e paleobotânicos
tem importantes implicações para a conservação das florestas. Seus
resultados sugerem que não é mais aceitável acreditar que as alterações
na paisagem causadas por atividades humanas ancestrais eram muito
limitadas e que por isso não podem ser comparadas com as alterações
humanas causadas no presente. Esse ponto de vista é reforçado pelo fato
da principal forma de destruição das florestas tropicais na atualidade
ainda ser a derrubada e a queima da floresta para a prática da
agricultura, uma atividade praticada pelo homem desde tempos
pré-históricos. Embora a taxa e a extensão da destruição florestal
contemporânea seja muito maior, em muitos casos o processo de perda é
comparável ao que acontecia em tempos pré-históricos.
Em muitos exemplos pré-históricos, a alteração da paisagem foi seguida
pela regeneração da floresta, indicando que os ecossistemas tropicais
não são tão frágeis como sempre são retratados. Na verdade eles são
muito resilientes. Abandonadas por um longo período, as florestas quase
sempre irão se regenerar e os dados paleoecológicos permitem fazer uma
estimativa realística do tempo necessário para isso acontecer. Esses
dados também permitem avaliar quantitativamente a composição da floresta
antes e depois da alteração, fornecendo informações detalhadas sobre o
que está faltando ou o que foi adicionado à floresta. E essas
informações são cruciais para o manejo e a conservação no longo prazo de
áreas desmatadas que vierem a ser incluídas em planos de recuperação
ambiental.
Os autores concluem o artigo afirmando que estratégias baseadas nesse
princípio já foram usadas com sucesso na conservação de florestas
temperadas, mas ainda precisam ser aplicadas de forma sistemática em
algumas das mais diversas e ameaçadas florestas do planeta – as
florestas tropicais.
Para saber mais
- Glaser B, Haumaier L, Guggenberger G, Zech W. 2001. The Terra Preta
phenomenon: a model for sustainable agriculture in the humid tropics.
Naturwissenschaften 88: 37–41.
- Heckenberger, MJ; Kuikuro, A; Kuikuro, UT; Russell, JC; Schmidt, M;
Fausto, C; Franchetto, B. 2003. Amazonia 1492: pristine forest or
cultural parkland? Science 301: 1710-1714.
- White LJT. 2001. The African rain forest: climate and vegetation. In: W
Webber, LJT White, A Vedder, N Naughton-Treves (Eds.): African Rain
Forest Ecology and Conservation. Yale University Press, New Haven, CT,
pp. 3–29.
- Denham TP et al. 2003. Origins of agriculture at Kuk Swamp in the
highlands of New Guinea. Science 301:189–193.
- N Myers. 2002. Protecting the Protected: Managing Biodiversity for
Sustainability. In: T. O’Riordan, S Stoll, Eds. Cambridge Univ. Press,
Cambridge, UK, p. 46.
- Foster DR. 2002. Insights from historical geography to ecology and
conservation: lessons from the New England landscape. J. Biogeography
29:1269–1275.
*Artigo originalmente publicado no diário A Gazeta, em 10/07/2012
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Evandro Ferreira