sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Nem todo mundo é 'txai' e nem todo mundo é 'genocida'


Aproveito uma breve brecha em meu extenso calendário de leituras para dar um pitaco aqui de longe, nas paradas que acontecem noutras bandas da floresta. É como se diz: posso até sair do Acre, mas o Acre não sai mais de mim, e assim, antes que possamos adentrar em assuntos mais amargos e espinhosos, deixa eu fazer aqui meu cumprimento: a floresta que habita em mim, saúda a floresta que habita em você.

Me obrigo a escrever sobretudo por um incômodo, ou algum acúmulo de incômodos do tipo que vão causando indigestões mentais e congestionando os pensamentos.

O primeiro deles, se refere a um termo, que francamente, nunca tinha ouvido falar, o tal ‘txaísmo’, se isso é de comer ou de beber, ou seja lá a fonte de onde isso surgiu (duvido que tenha partido do Acre) tão prontamente aparece, ou mais prontamente ainda, aparece alguém querendo ‘botar ordem no galinheiro’, e tome esculacho indiscriminado, do jeito de quem joga a merda no ventilador giratório, e pronto, sai satisfeito como alguém que se livrou de uma constipação.

Pronto, dito isso, vamos lá: porque tem tanta gente que se incomoda com as relações geradas entre índios e não-índios a partir do xamanismo - venham lá me dizer que não existe xamanismo, porque é uma generalidade e que cada povo tem sua cultura e etc, etc.. o que é tudo verdade, mas se não tivermos uma mínima base comum de entendimento, não poderíamos se querer ter qualquer conversa -. Fato que é que nos últimos anos não param de surgir críticos à relação entre indígenas e não-indígenas, por meio deste campo comum criado pela comunhão da ayahuasca.

É sempre gente mui bem intencionada, a defender seus purismos, como o ‘caboco’ lá da França que evocou o mais trevoso evolucionismo para recomendar, como quem recomenda bula de remédio, de que os ‘brancos’ deveriam se afastar do ‘xamanismo’. Segundo ele haveria um fosso intransponível ‘de milênios’ que impediriam a nós, brancos de aprender algo que preste com os índios. Deveríamos, dizia ele, devotar nossas almas ao bom e velho Javé genocida do velho mundo, quase como quem diz ‘só eu sou seu deus’.

E aqui, é claro, nossa gente tão prestativamente colonizada aplaudiu de pé, reproduzindo nos quatro cantos a conversa, essa sim ultrapassada, de que os índios vivem em ‘outro tempo’.

O segundo incômodo foi ver ter surgido a palavra ‘genocida’ no documento final do primeiro encontro da ayahuasca. Isso porque, dos três dias que participei, confesso que não ouvi tal palavra. E ela apareceu, assim, meio que de contrabando, como quem fala com mineradores e pecuaristas, apontando sua metralhadora giratória para os brancos malvados que ousam comungar ayahuasca.

O tiro à queima roupa só pega justamente naqueles que estão mais próximos das comunidades indígenas. Justamente aqueles que tem buscado desenvolver diferentes formas de parceria, voltam para casa com o carimbaço nas costas: genocida.

O incômodo de ser colocado no balaio genocida, só não supera o incomodo de presenciar o próprio genocídio, ou para ser mais claro, epistemicídio, a que assisto desde as primeiras peias. Trata-se do termo comum a que algumas religiões ayahuasqueiras, ao se referirem as suas cosmologias, desconsideram completamente a questão indígena. Aparecerão figuras tão díspares quanto o lendário rei de Israel Salomão ou então um mítico Inca, mas nada de mencionar os indígenas. Isos sempre me incomodou e tem sido um dos mais fortes motivos para que busque compreender os usos da bebida em seus contextos mais original possível.

Pois bem, enquanto estas cosmologias permanecem encerradas no campo do mito, não há muito o que dizer. Salomão representa Conhecimento e Inca representa Ordem. Não há nada de 'errado' nisso.

O problema passa a ser quando, atribuindo-se grau de verdade histórica a estes mitos, passa-se a evocá-lo para negar direitos aos indígenas, como por exemplo para excluí-los do debate sobre a ayahuasca, como inclusive, aconteceu de fato.

Bem, mas nem todos estão desse lado da história, tem gente trabalhando ombro a ombro com os povos indígenas, em sentido de parceria, o que se torna muito mais concreto e viável, quando as lideranças e a comunidade também tem uma visão clara do que querem. Não faltam aliados. A esses, o termo Txai vem sendo cunhado (o trocadilho foi involuntário), desde os tempos da Aliança dos 
Povos da Floresta**, um empréstimo de um termo nativo, para criação de um sentido mais amplo de pertença que possa congregar gente de dentro e de fora das aldeias em busca de um sentido comum. 

Não vou me deter aqui no sentido original da palavra, que certamente não é amigo e muito menos irmão, estaria mais para um cunhado em potencial*, mas é fato que pela própria definição, nem todo mundo na aldeia é ‘txai.

No sentido novo, criado a partir da presença do Txai Terry e Txai Macedo e imortalizado na canção de Milton Nascimento, a palavra evoca uma aliança, uma confiança mesmo naquele que é diferente. Por isso mesmo gosto da palavra e mais ainda dela reinventada para seu uso político, que convenhamos é de uma engenhosidade e criatividade de tirar o chapéu.

Talvez isso incomode gente desacostumada aos rios e barrancos e às alianças que evoca. Preferem antes evocar a ‘Fucô’. A tal ‘problematização’, como um miojo, pode ser evocada sem grandes cerimônias, e fica pronta em cinco minutos. Ao gosto do freguês, ela pode vir acompanhada de diferentes sabores, que no fundo tem o mesmo gosto algum que serve para todas as discussões e debates.

É por essas e outras razões que nem todo mundo do lado do branco é ‘txai’, e que também não dá para ser ‘txai’ de todo mundo. Do mesmo modo, nem todo mundo também é genocida.

Em tempos de 'hashtag', poderia dizer que tanto uma #somostodostxais, quanto uma #somostodosgenocidas, seriam igualmente falsas.

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* Txai: o uso da palavra é bastante complexo e tem relação com as cosmologias indígenas. Um txai, originalmente é uma pessoa que não pertence ao mesmo grupo de consaguinidade, ou seja, em tese, faz parte do grupo com que se pode casar, e portanto, formar alianças.

**Alianças dos Povos da Floresta: Me lembro claramente de uma conversa com um agente da ABIN que criticava o termo. Para ele estariam juntando duas categorias: índios e ribeirinhos, em uma terceira categoria que na verdade 'não existe', para uma finalidade política. Achei razoável. E recentemente tenho visto por exemplo, setores do movimento negro comemorarem a adesão de indígenas e caboclos (estes estão desaparecendo e não por 'branqueamento', mas por razões políticas) à categoria de identidade 'negra'. Se isso não for criação política de identidade e pertencimento, Não sei mais o que pode ser. A diferença fundamental me parece ser o caráter periférico da criação simbólica acreana. Fato também é que a 'aliança' soçobrou, a não ser talvez no imaginário. Prova maior disso e o avanço da pecuária e das igrejas pentecostais nas RESEX. Mas talvez possa ser reinventada em outros termos, quem sabe justamente nos termos das alianças que vem sendo tecidas por meio dos diferentes xamanismos.

Já a invenção política de chamar índios, caboclos e afrodescendentes de 'negros' é muito recente para saber se irá perdurar por muito mais tempo.