sábado, 18 de fevereiro de 2017

Apu Auzangate e a dimensão material do sagrado

Auzangate: 6384 mts de altitude
É a segunda vez que cruzo os Andes naquela altura. Na primeira em 2009, realizei a façanha em uma moto 125 cilindradas. Acima de 4 mil metros de altura ela mais fazia barulho do que andava. Poderia ter escrito um artigo sobre como cruzar os andes em um barbeador elétrico, já que era o que sugeria o som do motor: um barbeador elétrico. O pouco oxigênio das alturas afeta drasticamente o rendimento dos motores. 
Aliás, não apenas os motores, mas de toda a vida. Naquela ocasião tive de fazer a subida em duas etapas. Uma parada em Marcapata, onde me assombrei com a história de condores atados nas costas de touros: costume andino que desconhecia e que estava representado em uma estátua de bronze de bronze na praça da cidade.

Recordo-me do clima aconchegante de uma pensão, onde moradores locais conversam animadamente em quétchua. Um deles, um jovem médico, tenta me fazer entender a formação das cadeias de montanha. É inútil. Meus conhecimentos geográficos não são suficientes para compreender as cadeias de montanhas, seus meandros e sobretudo, o significado para aquela gente.

Mas eles também ficam surpresos e estupefatos quando lhes digo que tanto o Madre de Dios, que corre pela face ocidental da montanha, inicialmente com o nome de Iñambari, quanto o Vilcambamba, que nasce na mesma cadeira de montanhas e corre no sentido contrário pela face oriental, unem-se novamente a quilômetros dali, quando o rio Madeira encontra o Amazonas. Olham-me com uma certa perplexidade. Era como se para aquele povo a proeza das águas contornarem o incontornável Auzangate fosse impossível. Ali a geografia era uma questão de sentir na pele da face, nos músculos das pernas e no ar dos pulmões, e em seus corpos eram marcados pela grandeza do Auzangate. Os rios serpenteantes das infindáveis planícies da Amazônia não fazem parte desta realidade.

A vantagem de subir em duas etapas, foi o tempo necessário para uma adaptação à altitude. Quando cheguei à Abra Piurani, a 4237 mts, não senti absolutamente nada além do frio, com a proverbial ajuda, é claro, das folhas de coca.

À minha frente, este ele, o Auzangate: um trono celestial que se ergue em direção ao firmamento, impondo à geografia, sua condição divina. Talvez por isso, haja tantas oferendas na margem da estrada. A maioria são montículos de pedra em que são depositadas folhas de coca, mas há também algumas de bebida e retalhos de lã colorida.

Intuitivamente, faço o mesmo, e oferto ao Auzangate um punhado de folhas de coca, arrumadas em um montículo de pedras. Uma singela homenagem ao gigante cujo olhar das alturas, é inescapável.

Desta vez estou com um equipamento melhor. Minha moto tem 250 cc e injeção eletrônica, o que significa uma capacidade de auto regulagem. Com isso, a moto perde pouca potência e a subida acontece de uma única vez. Mas, desta vez quem sentiu fui eu. Faltando alguns quilômetros para o ‘abra’, sou tomado de uma vertigem, como quem olha para baixo do alto de um arranha céu. 
Concentro-me, e depois de serpentear cuidadosamente, e sem nenhuma pressa pela estrada, finalmente consigo chegar ao ‘abra’, já totalmente consciente que é o poder do Auzangate que rege minha sorte.

Desço da moto e apesar da belíssima paisagem, nem sequer penso em selfie. Quero mesmo é me por de joelhos aos pés do Auzangate, agradecer por ter chegado até ali, e pedir proteção para o seguimento da viagem. Me vem a memória um velho amigo, o acreano de origem libanesa Gamal Murad. Tão apaixonado quanto eu por aquela montanhas, Gamal sofreu um acidente fatal naquelas altitudes, no final do último ano. A lembrança de que era um responsável motorista e experiente naquelas estradas, somente reforça meu temor de percorrê-las.

Dou poucos passos e a vertigem me domina por completo. Faço uma pequena oferenda de folhas de coca, pedindo ao Auzangate que me permita ir e voltar daquela viagem. Substituo a coca já mascada por um novo chumaço e quando vou subir na moto, sinto um quase desmaio. Aí para frente vem a descida, o que torna este trecho especialmente mais perigoso. A moto morre e não consigo dar na partida novamente. Sou obrigado a deixar que pegue um embalo na descida.

Olho par os lados. Nenhum caminhão. E deixo que a montanha faça o trabalho que minhas pernas, naquelas condições, jamais poderiam. Felizmente, não é preciso muita descida e ela logo pega no tranco.

Vou serpenteando montanha abaixo com atenção redobrada. Se a face ocidental dos andes estava relativamente quente e seca, a face oriental incrivelmente está fria. O degelo dos andes parecem acentuar a sensação térmica do frio. Mas o frio intenso também permite sentir a radiação solar das paredes das montanhas. Aquele SENTIR me traz algo de devoção, análogo talvez ao que um fiel sinta durante um culto em sua igreja. Ali está a maior de todas as catedrais, com paredes de rochas, vitrais de gelo e fontes de cristalina, aquecidas e iluminadas pelo Sol no firmamento.

Penso que estou tendo ali, um vislumbre do que possa ser a cosmovisão andina: um sentido de devoção não voltado ao abstrato, mas às coisas materiais e concretas que determinam nossas vidas. Por isso talvez, o epíteto APU Auzangate – Senhor Auzangate. São senhores absolutos da vida ali afinal, a montanha, e o Sol.

E como vivem afinal, naquelas altitudes, aquele povo de face rosada, queimada pelo Sol, pastoreando suas lhamas, em casas feitas de rocha e adobe. Sabem melhor que ninguém quem são os senhores que ensinam a viver em condições tão extremas.

A indicação de uma pequena parada ‘caldo de cordeiro’, parece promissora. E de fato é. O caldo e um chá de coca e um pouco de maca me põem de pé novamente. Mas eu, o garoto tropical, cometo a burrice de deixar o capacete no espelho da moto. Ao vesti-lo novamente me dou conta da burrada: havia se convertido em um bloco de gelo. O resultado do frio agudo sobre as têmporas é uma persistente dor de cabeça. Mais à frente vem chuva. ‘É só um sereno’, penso eu, mas o ‘sereno’ ainda que não se compare com as chuvas torrenciais com que me acostumei na Amazônia, traz um frio que penetra até os ossos. As luvas já não adiantam de muita coisa e minhas mãos estão dormentes. Nas pernas, anuncio de câimbras. E na alma o medo de que a falta de sensibilidade me leve a um acidente.

Paro a moto e urino sobre minhas mãos: um jeito estranho, mas eficaz de trazer de volta a sensibilidade perdida com o frio.

Serpenteio a estrada até o seu fim em Urcos e depois em uma quase reta até Cuzco.
Já depois de um banho e aquecido sob cobertores, as redes sociais trazem notícias sobre minha cidade, Cruzeiro do Sul, enfrentando uma alagação sem precedentes históricos.

“O Juruá é nosso APU’, penso eu, em uma improvável adaptação amazônica da cosmovisão andina. 
rio Juruá


Mas aqui é ele afinal, quem determina nossa vida. Suas infindáveis curvas, serpenteando amazônia adentro é que dizem como devemos viver por estas bandas. Se há terra para habitar, é por que o rio assim permite. Se a serpente se mexe -e ela se mexe - águas e terras cambiam seus lugares e somos nós, e não Ele, o APU Juruá, que tem de se adaptar.

“Não faz sentido essa divisão entre material e espiritual. Essa é uma divisão da mente do homem branco, do europeu, do dito civilizado, que precisa voltar sua devoção ao abstrato, para se livrar do sentimento de culpa de quem profana o mundo que habita”.


Tais palavras me foram ditas por um ‘Amauta’ (sábio) andino, anos atrás e encontram eco, nas palavras de Ailton Krenak: “O sagrado está no olhar de quem vê, e quem vê uma montanha apenas como uma pilha de minérios a serem transformados em quinquilharias, certamente não pode, ou não consegue, ver a dimensão sagrada de tudo que nos cerca.”  

domingo, 12 de fevereiro de 2017

‘Ah, Kambô Kambô Ho!’: Uma cerimônia de ayahuasca me mostrou os possíveis riscos da medicina

Há anos era a mesma coisa: durante as cerimônias de ayahuasca, sentia uma forte impaciência, que me levava a cantar, balançar o maracá, ou me agitar de qualquer maneira, antes mesmo da manifestação plena da miração.

No dia-a-dia, uma coisa me perturbava imensamente: ao por exemplo procurar uma chave, um isqueiro ou um documento que fosse, meu coração começava a se agitar e era tomado de um desconforto muito grande. ‘Bem, isso sou eu, mas é também algo mais’, pensava.

Minha intuição me levou a buscar, do outro lado da fronteira, o conhecimento do povo Shipibo. Com população estimada em mais 20 mil pessoas (alguns relatórios falam em até 35 mil), em cerca de 140 comunidades é o grupo Pano mais numeroso. Em muito sua cultura se assemelha com os grupos pano do Acre, mas por terem se estabelecidos nas margens de um grande rio como o Ucayalli, ao invés de zonas interfluviais como os grupos Pano no Acre, sua cultura ganhou os contornos de uma cultura difundida por uma extensa zona.

Na verdade, ao visitar os Shipibo, tenho a sensação de que deve ter havido no passado algo como uma civilização Pano a qual pertenceram povos dos lados da fronteira, criada séculos depois, pelo homem branco. Inclusive consta em um mapa etnográfico do padre Tastevin a identificação de grupos Shipibo na região do Juruá no século XIX. Com diferenças mas também muitos elementos culturais em comum, esses povos por vezes tiveram também seus conflitos, talvez de modo análogo com que guerreavam as cidade-estados da Grécia Antiga, mas ainda assim, compartilhando suas crenças e visões de mundo, mitologias e sistemas de conhecimento.

Acredito ser por conta de sua predominância numérica ou talvez mais ainda pelo intenso contato com outros povos, que o sistema de conhecimentos tradicionais dos Shipibo tenha se desenvolvido a um nível prático ao ponto de seus curandeiros não serem vistos pela população local apenas como um exotismo. Trata-se de medicina popular, a qual recorrem pessoas de Pucallpa, Lima e Cusco, por exemplo. Quiçá os curandeiros Chipináguas, descritos pelos cronistas incaicos, já não percorriam as altitudes realizando atendimentos ainda durante o Império Inca. Se do lado brasileiro, a colonização branca forçou os povos indígenas a um isolamento entre si, o fluxo de conhecimento entre diferentes culturas e pisos ecológicos parece ter sido uma constante dentro da lógica do Tawantinsuyo.

Esses sistema utiliza um sem-número de plantas medicinais. Mas o kambô, medicina de origem animal, não é uma delas.

Meu contato foi com um jovem Xamã, ou nas palavras dele, Curandeiro. Diego tem apenas 31 anos, mas nasceu imerso dentro da cultura do curandeirismo vegetalista, e tem se dedicado ao aprendizado há doze anos.

Diego dizia-me que eu não necessitava de longas dietas, que eu já as tinha e que seria apenas caso de ‘arreglar-las’ e ‘endereçá-las’, pois estavam como que emaranhadas em um ‘bolão’.
Sendo assim, dirigi-me à comunidade Vista Alegre no rio Paichitea, afluente do Ucaially, para uma curta dieta de dez dias.

Deu início ao tratamento com o ‘Chumpá’ (não confundir com o chumpê – floripôndio). Trata-se  um cipó de odor semelhante ao cravo . Nos dias subsequentes, foi administrado o ‘Ajo Sacha’ (‘Alho em folha’, em uma tradução aproximada) e a Guayusa (também uma folha perfumada, de limpeza). A cada dieta, na noite seguinte, Diego conduzia uma cerimônia de ayahuasca, onde as plantas são ‘icaradas’, ou seja, canta-se para que suas propriedades manifestem-se como medicina no corpo do paciente.

Na terceira cerimônia, senti muito fortemente, uma palpitação no coração que foi se intensificando até o ponto em que mal conseguia respirar. Foi quando me dei conta, de que aquele efeito não era da ayahuasca que havia tomado, mas reproduzia ou emulava o efeito do kambô.

Aquilo deveras me surpreendeu. A última vez que tomara Kambô fora há cerca de três anos, com um pajé katukina. Contudo, a miração não me conduzia a esta ocasião, mas há cerca de 18 anos atrás, tempo de minha chegada à Amazônia, quando fiz um uso bastante frequente da medicina, por cerca de um ano. A miração mostrava-me que o uso continuado, sem as adequadas dietas e resguardos, resultaram em um efeito descontrolado, que permanecia em níveis muito internos do corpo.

Tive a sensação de que alguma das válvulas de meu coração estava dilatada em relação às demais, o que causava uma sensação de coração inchado e trazia uma sufocamento. Em alguns momentos parecia que o coração iria explodir. O que assustava era que aquele efeito não se dava durante uma aplicação de kambô, mas em uma cerimônia de ayahuasca, muitos anos depois. Ou seja, havia um efeito residual, que permanecia no corpo.   

Comuniquei a sensação a Diego que passou a ‘icarar’ o kambô. Dizia-me que estava como veneno, e que estava a convertendo para medicina.

Na mesma hora, me veio aquele velho postulado de que a diferença entre um veneno e o remédio é a dose. Mais do que apenas a dosagem, as dietas e resguardos subsequentes são essenciais para que uma substância possa ter efeito positivo e não negativo, no corpo. Mais ainda quando se trata de uma substância da potência do kambô. Dentro de sistema de conhecimento Shipibo, uma substância só torna-se medicina quando ‘icarada’, ou seja, quando se canta para essa medicina, e simultaneamente também para o corpo do paciente. Dentro dessa visão somente assim é desperto seu potencial curativo e pode trazer benefício. 

Não por acaso, o pajé katukina que me aplicou a medicina cantou o equivalente 'ícaro' do Kambô: 'Ah!, Kambô, Kambô Ho...' 

Pensei também, ser muito improvável que a própria substância em si, pudesse ainda estar em meu corpo 18 anos depois. Ou mesmo três. Mas isso somente testes poderiam identificar. O que a miração mostrava-me era se tratar muito mais de uma memória específica do efeito, guardado em receptores neurais no corpo, que sob condições específicas poderiam ser acionados e se manifestar, ainda que em níveis internos estivesse sempre presente. Pensei também que nem tudo poderia ser atribuído ao kambô, mas à minha própria estrutura psíquica, com o kambô atuando sobre ela.

Não quero com esse texto contribuir para uma ‘negativação‘ do kambô. Centenas de pessoas relatam melhoras em suas condições de saúde que variam desde gastrites até dores crônicas.

Destaco também que o que foi apontado pela miração foi que minha própria imprudência, por ter tomado kambô seguidamente e segundo minha própria vontade por pessoas talvez tenha sido a causa desse efeito. Tampouco cumpri resguardos que considero necessários. Isento de qualquer responsabilidade as pessoas que me aplicaram o kambô nesse período e a assumo completamente.

Outro ponto que vale mencionar também é que a vida de um índio na floresta já é, em si, uma ‘formação’. Longas caminhadas na mata, sol e atividades físicas intensas desde a mais tenra idade, mudanças bruscas de temperatura e mais uma série de outras especificidades da vida indígena que suponho, tenham efeito sobre questões como pressão sanguínea, pulsação e a ‘calibragem’ das veias.

Vejo-me compelido a escrever este relato pessoal, movido principalmente pelo senso de responsabilidade. Meu TCC de graduação em jornalismo foi sobre a expansão do uso do kambô nos centros urbanos do país, que naquele tempo vinha começando a ser popularizado  entre a população não-indígena. Então de certo modo, fui também um dos responsáveis pela sua difusão. Somente por esta razão que considero meu dever compartilhar essa experiência pessoal como forma de alerta.

Hoje, com a medicina difundida não apenas no Brasil, mas já em todo continente, EUA e Europa, e com o relato de pelo menos duas mortes por efeito direto ou indireto do uso de kambô, acho prudente, e necessário, apontar possíveis riscos para o seu uso indiscriminado.

Pesquisas científicas sugerem a eficácia do kambô para o fortalecimento do sistema imunológico, entre outras coisas, o que significa que vale a pena continuar os estudos. Para quem busca a medicina em sua forma tradicional, vale também saber de possíveis resguardos e restrições, quantidade, frequência e etc. Sobretudo, respeitar os próprios limites do corpo, muitas vezes acostumado à vida mais ou menos sedentária das cidades.

O Kambô, é uma medicina forte e sagrada que pode inclusive, sem dúvida, salvar vidas, e justamente por essa razão deve ser tratada com o respeito que merece.

PS: Quanto ao trabalho dentro do conhecimento Shipibo com a ayahuasca, deu resultado: na cerimônia seguinte, não tive mais aquele efeito, e posteriormente não senti mais a impaciência e palpitação descontrolada de antes.


Imagem: site Herpetofauna