sábado, 10 de janeiro de 2015

O show não pode parar

Na última sexta-feira, sirenes, buzinas e gritos pedindo "justiça" alteraram a rotina da nossa pacata "smallville' cruzeirense.

Um prato cheio para uma imprensa quase sempre carente de pautas. Com tanta coisa acontecendo "aí pra fora", muitas vezes não é fácil convencer o telespectador a permanecer na frente da TV para assistir ao noticiário local.

Talvez por isso haja um sentimento tão forte de gratidão entre a imprensa e  polícia.

A chegada dos prisioneiros (em carro aberto) suspeitos do assalto que resultou na morte do sargento M.Araújo foi de fato um espetáculo orquestrado com maestral regência. Os familiares emocionados, os pano pretos desfraldados tremulando ao movimento de motocicletas, convertidas agora em porta-estandartes da indignação de toda uma cidade. Em seguida vieram o choro e os gritos de "assassino", logo após acompanhados das sirenes trazendo som e luz à nossa rotina. um verdadeiro espetáculo.

Tivemos ainda uma tentativa de linchamento (oba, isso dá mais uma pauta!) e após uma espera não muito longa, a "cereja do bolo": em um auditório climatizado e confortável são apresentados à imprensa os suspeitos: algemados e com suas caras inchadas e vermelhas. As confissões na ponta da língua não deixavam dúvidas sobre a participação dos mesmos no crime (exceto dois cruzeirenses: "Tati" e sua mãe, Luiza, que negaram qualquer participação, mas isso é piaba para outro caldo).

Suspeitos do assalto. imagem: Juruá on Line


Basta um olhar minimamente equidistante para perceber que a ação todo foi conduzida como um espetáculo a ser oferecido à população.

Estaria eu com isso condenando a ação-espetáculo?

De forma alguma. Afinal, não basta ser eficiente, é preciso mostrar-se eficiente. e As polícias civil e militar (em uma parceria difícil de se ver) neste caso souberam fazer as duas coisas muito bem.

A menos que provas e confissões venham a ser desmontadas diante do tribunal do juri (o que eu não creio), as polícias cumpriram o objetivo de capturar os criminosos em cerca de uma semana, sem um único tiro disparado. Rápido, limpo e preciso.

Não dar a esta ação o merecido destaque a esta ação, seria um crime imperdoável.

Principalmente em uma semana em que houveram seguidas denúncias de abuso de autoridade.

Durante a coletiva, Major Emílio que responde pela PM e toda região (incluindo Tarauacá e Feijó) defendeu a ação da PM e disse que não houveram arbitrariedades, que todas as prisões e abordagens tinham um motivo, ainda que nem todos estivessem ligados diretamente ao assassinato do sargento.

Ainda que compreenda perfeitamente o papel do comando em fazer esta afirmação, mais uma vez sou obrigado a respeitosamente discordar, desta vez com base no que vi e ouvi na ruas de Cruzeiro do Sul nesta semana.

A afirmação de que a intensificação destas ações não tinham relação com o crime que vitimou o sargento não corresponde ao que alguns policiais falaram nas ruas durante as abordagens. Da boca de um saiu: "mataram um dos nossos, 'tamo muito mansinho mesmo"

Não é preciso ser profissional de imprensa para perceber que as ações da polícia recrudesceram no período. Quem anda nas ruas percebeu isso e sentiu esse clima.

Rotina?

Francamente duvido. Especialmente para uma polícia que muitas vezes mal consegue responder aos inúmeros chamados da população. Salta aos desta mesma população olhos o súbito rompante de eficiência dos últimos dias. Foi como se o Popeye tivesse comido espinafre.



É muita "vontade de combater o crime", para uma polícia que há menos de dois meses se recusou a atender um chamado de assalto no momento que ele acontecia em um residência. Segundo a vítima, a  primeira reação do atendente da PM  foi dizer que assalto era um caso para a Polícia Civil.

Ao ligar na delegacia, a vítima foi informada que precisaria esperar o dia seguinte par registrar a ocorrência, do assalto que acontecia naquele momento.

O marido da vítima chegou à residência a tempo de coibir o assalto e novamente ligou para a polícia desta vez para apenas conduzir o suspeito preso em flagrante para delegacia. Mas aí faltou viatura, combustível e principalmente boa vontade e quem teve que levar o preso para a delegacia foi a própria vítima em seu carro particular.

O que mudou em menos de dois meses?

Acho que estas são perguntas e questionamentos que devem ser feitos nos momentos certos e não apenas se deixar conduzir pelo espetáculo que entretém e satisfaz muito, mas que informa pouco e transforma menos ainda.

Sem estar atento a estas contradições do discurso, a imprensa poderá se deixar conduzir para uma "assessoria de imprensa da polícia", apenas reproduzindo B.Os e mais do que isso, reforçando lugares-comuns e esteriótipos que resultam no recrudescimento da violência.

Este já tem sido o papel de alguns meios de comunicação já há algumas décadas no Brasil. O fenômeno "Cidade em Alerta" começou no rádio, na década de 80 com o sujeito chamado Gil Gomes, aterrorizando a vida das donas-de-casa pela manhã bem cedo com histórias das mais escabrosas possíveis.

Trinta e cinco ao depois pergunto o que Gil Gomes e seus sucessores contribuíram para a diminuição da violência? Nada. pelo contrário, só fizeram crescer o medo e o filho do medo: o ódio.

Muita gente pode questionar afirmando que é apenas o retrato da nossa realidade. Diria que é apenas um recorte da nossa realidade. No momento que este recorte é transformado em notícia pode ganhar uma conotação a mais, um tom vermelho a mais de sangue, pode transformar-se em espetáculo e aí, meus caros colegas, se preparem para alimentar um telespectador cada dia mais sedento de sangue.

O gosto do populacho pelo sangue é atávico, ancestral. Não fosse assim não teríamos tido arenas lotadas para ver cair o sangue dos gladiadores.



E assim seguimos até hoje. Mudam os meios, mas o sangue, é o mesmo.

Afinal, o show não pode parar.


sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Economizam no dinheiro, mas não no sangue



Familiares de policial assassinado têm direito à indenização por parte de empresário, afirma Major da PM

Em meio a bandeiras negras, comoção popular e uma ação espetacular das Polícias Civil e Militar, é de se esperar que passem despercebido aspectos digamos “secundários” da notícia em si, mas que de fato, podem estar na raiz dos problemas noticiados.
Tentativa de linchamento na chegada dos suspeitos. Imagens: Juruá On Line

O primeiro é a questão dos “bicos” realizados por policiais como segurança privada.

Durante a coletiva desta quarta-feira (08), tive a oportunidade de questionar o comando regional da PM sobre a prática, que além de ilegal, coloca em risco a vida de pessoas.
Meu primeiro questionamento foi sobre o recebimento de benefícios a que a família do policial assassinado teria direito em caso de morte em serviço.
Major Moura, Comandante da PM em Cruzeiro do Sul e região
O Comandante regional da PM no Juruá, Major Moura respondeu que os familiares receberiam os benefícios assegurados por lei.
Mas o fato é que a lei não assegura tais benefícios no caso de o policial ter morrido fora de serviço, ou nesse caso pior: prestando um serviço que é ilegal.
Major Negreiros complementou a informação, afirmando que os familiares têm direito a pedir na justiça, indenização ao empresário pela morte do PM.
Major Negreiros comanda as operações aéreas da PM no Acre
O segundo questionamento é com relação à própria exposição ao risco de morte durante o serviço de segurança privada pelos PMs, sem as devidas garantias.
Na opinião de Major Moura, a atuação dos PMs como seguranças privados, ainda que ilegal, seria um fator de segurança a mais, pois reforçaria a presença policial nas ruas da cidade.
Sobre este ponto, sou obrigado a respeitosamente discordar do comandante, e apresento meus argumentos, não com a autoridade de um especialista na área de segurança pública, mas como um ex-morador de uma das cidades mais violentas do mundo.
A atuação dos policiais como seguranças privados, tal qual está acontecendo em nossa cidade, tão somente os irá expor a um risco extremo de serem mortos.
No caso específico do Major M.Araújo, por ocasião do assalto, o mesmo encontrava-se na função de motorista. Armado e sozinho tornou-se um alvo com poucas chances de reação e menos ainda de evitar o assalto.
Sargento M.Araújo. Imagem: Ecos da Notícia
Não é segredo que em Cruzeiro do Sul, policiais militares sejam vistos em supermercados, às vezes atuando como guardadores de capacetes ou empacotadores de mercadoria.
Sua presença pode ter a eficácia de afastar algum “bêbado” ou “noiado” que deseje furtar uma lata de leite, mas não significa absolutamente nada para criminosos minimamente organizados. É apenas o primeiro alvo a ser eliminado ou neutralizado.
Em setembro de 2013, o sargento Cleiton Aquino morreu na função de segurança privado após ser baleado durante uma tentativa de assalto à loja City Lar em Rio Branco.
Por vezes, a mistura de funções como segurança pública e privada, ganha contornos ainda mais obscuros, como o caso recentemente noticiado na imprensa da capital em que policiais teriam praticado a extorsão o proprietário do Auto Posto Correntão, em Rio Branco , afirmando que o “serviço de inteligência” teria descoberto um assalto planejado para o estabelecimento. Após pagar durante meses o serviço de segurança privada a uma equipe formada exclusivamente por PMs, o empresário resolveu cancelar o serviço e denunciar a extorsão.  
É fato que nossa região não possuiu ainda um histórico de violência que suscite tais questionamentos, mas este histórico começa a mudar, e antes que mais vidas se percam, é importante atentar para estes fatos.
Cruzeiro do Sul dispõe hoje de pelo menos quatro empresas de segurança privada. Em conversa com um empresário do setor, o mesmo me confidenciou que o preparo de um policial militar, é de fato melhor que o de um segurança privado, mas que o PM não tem garantias legais no caso de ser baleado, ou se por ventura, matar o assaltante.
Podemos dizer que por trás de um crime, há pelo menos outros dois: o exercício ilegal da profissão de segurança privado, com evidentes riscos à vida humana e a complacência do comando da PM com a prática ilegal.
Da parte do empresariado percebe-se também uma prática que apesar de não poder ser classificada como ilegal, é pelo menos, imoral: colocar pessoas em situação de risco de morte em defesa de seu patrimônio privado, sem as garantias legais que tal exercício exigiria.
Em poucas palavras: economizam no dinheiro, mas não no sangue. Do outro, é claro.

* O segundo aspecto "secundário" diz respeito justamente ao trabalho da imprensa, e farei um post sobre isso mais adiante