quarta-feira, 29 de abril de 2015

Paulista não praticante

Uma amiga e colega jornalista acaba de me entrevistar para um matéria, e talvez por deferência à minha pessoa, fez a gentileza de me encaminhar o texto, dando-me liberdade para acrescentar ou tirar algo.

Lá na minha ficha de apresentação, a matéria trazia a informação “jornalista paulista”...

Aquilo me soou mal. Pedi à colega que colocasse apenas “nasceu em São Paulo”.

Parece a mesma coisa, mas não é. Acho que não basta nascer em São Paulo para ser “paulista”.

Penso que para ser “paulista” é preciso praticar. É preciso viver a constante da megalópole.

Parafraseando Euclides da Cunha, o paulista é antes de tudo, um forte. Só algum tipo de força interior pode explicar como seus quase 20 milhões de habitantes suportam um dia-a-dia que me parece insuportável.

Eu não. Eu sou um fraco. Um trânsfuga que trocou a fumaça da capital, pela brisa amazônica. Que trocou o congestionamento pelo embalo da rede. Sou um covarde, é isso que eu sou.

Penso em mim como aqueles filhos de família católica que são batizados, catequisados, crismados, mas que nunca de fato acreditaram na ladainha do padre e que ao atingirem a idade adulta, atiram-se ao ateísmo de Marx, Nietzche, ou Sartre com uma avidez por assim dizer, fervorosa.

Este “fugitivo” deve lembrar o sabor da hóstia, o perfume do incenso, o tom monocórdico do sermão do padre, mas isso faz dele um “católico”?

Como um paulista não-praticante ainda guardo a lembrança corporal do stress, do medo e da sensação de estar cercado por milhões de seres humanos, sem contudo viver plenamente a minha humanidade.

Por esta razão, só posso ter um respeito ainda maior por quem, além de sobreviver nesta selva, ainda luta para torná-la mais humana. Estes, vão além de serem paulistas praticantes. São verdadeiros sacerdotes.

Tenho por exemplo, uma amiga, que nasceu no nordeste, mas vive intensamente tudo de bom e de ruim que a vida em São Paulo oferece. É uma paulista praticante. Se eu decidisse voltar a viver em SP teria que pegar aulas com ela.

Muito mais paulistas do que eu são os bolivianos que agora ocupam o bairro decadente onde eu nasci,  ou os nigerianos que andam pelo centro da cidade em busca de trabalho. Estes são os paulistas, não eu.  

Eu apenas virei as costas e deixei tudo isso para trás. Não mereço ser chamado de paulista. 








   


quarta-feira, 22 de abril de 2015

“O poder para fazer o mal é o mesmo para curar”

Por Patrícia Flores*

O livro “Muká – A Raiz dos Sonhos”conta a experiência do jornalista Leandro Altheman em um processo de formação espiritual com índios yawanawás do Acre.

O relato detalhado de Altheman sobre o que vivenciou junto com esses índios é uma viagem a um mundo inimaginável, são janelas que se abrem em direção a um mundo que consegue ser fantasioso e concreto ao mesmo tempo. Acompanhar o jornalista em sua viagem espiritual de auto-conhecimento é pesquisar um pouco sobre a matéria-prima de todos nós seres humanos. Durante a leitura do livro, é impossível não pensar em Shakespeare e nas frases de Próspero na peça A Tempestade: “Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono”. A obra de Shakespeare é povoada pelo mundo dos sonhos e dos espíritos. É através do contato com um mundo invisível que alguns de seus personagens enxergam o cerne da realidade do mundo “visível”. E é exatamente isso que Leandro Altheman parece ter vivenciado. Em determinados momentos do livro o leitor terá a impressão de também estar fazendo uma jornada ao centro do seu eu ou ainda ao núcleo da nossa sociedade.

É importante dizer o sentimento de privilégio que o leitor adquire lendo o livro, pois a experiência do autor não é algo corriqueiro: poucos são “escolhidos” e se mostram dispostos a passar pelo longo e profundo ritual de iniciação espiritual, que tem como base digerir uma raiz sagrada chamada de “Muká” pelos yawanawás. O ritual da raiz de gosto amargo exige uma dieta de um ano sem doces e relações sexuais, além de rituais e dieta de preparação e um período de isolamento de pelo menos dois meses, no qual a dieta se torna ainda mais rigorosa. No isolamento, sem comer nada nas primeiras 24 horas depois de digerir o muká, as refeições das semanas seguintes se limitam a alguns peixes (sem esporão), arroz, banana, feijão, cuscuz, açaí e mais alguns poucos alimentos. O tempero da comida é preparado sem sal, mas com limão e pimenta e não é permitido beber água pura. Tudo isso transforma a caiçuma de milho com seu sabor adocicado na grande “dádiva” da dieta. É como se ela fosse o momento lírico da refeição.

Mergulhamos assim no mundo do muká, do uni, do samakei, do sheki mamã, do shuintiya, do vaná, dos kenês, do nanê, dos saitis, do sepá, do xinã, do vê kuxi, do uriá. De repente, palavras que nunca ouvimos se tornam familiares e enchem nosso pensamento de um ritmo que nunca ouvimos, mas que tomou forma em algum lugar dentro de nós.

É linda a capacidade do livro de nos encher de respeito pela cultura indígena. Acompanhamos ali o rico mundo cultural e simbólico de um povo enraizado na floresta. Percebemos a sua relação com a terra, com as plantas e com os animais. E além de ser maravilhoso saber que isso existe, é um aspecto muito importante em tempos em que se continua desrespeitando tanto o direito indígena sobre a terra, com demarcações e desapropriações de terras absolutamente arbitrárias – sem falar nos assassinatos que ocorrem por essa causa. Como seria produtivo se os governantes que decidem sobre as terras indígenas tivessem consciência real da relação do índio com a terra, conhecessem um pouco do respeito, da troca e da sabedoria indígena em relação ao universo no qual todos nós estamos inseridos. E não é que essa relação seja romantizada no livro. O que testemunhamos nos relatos de Leandro Altheman do seu cotidiano em meio aos yawanawás é uma relação concreta, respeitosa e produtiva com a floresta e os seres que a habitam.

O que também impressiona no livro é a “convivência” que os índios têm com seus ancestrais. Esses últimos estão presentes no dia-a-dia. Seus desejos e avisos são recebidos através de sonhos e mirações (visões que se tem quando se toma ayahuasca) e muito respeitados. Não se entra aqui no mérito de acreditar ou não em uma comunicação que ocorra em um mundo onírico ou alucinógeno. Não é esse o âmago da questão. Não é preciso acreditar nisso para constatar a presença dos ancestrais na vida dos índios yawanawás. É real o fato de que eles acreditam continuar em contato com os que já foram e de que eles levam isso muito a sério e de forma absolutamente conseqüente.

O mérito do relato de Leandro Altheman é que somos apresentados e nos familiarizamos com aspectos como esse da cultura yawanawá aos poucos. Temos a impressão de fazer o mesmo caminho que o autor, de descobrir e de nos acostumar com os “novos elementos” dessa cultura junto com ele. Suas descobertas, observações e reflexões são escritas de forma muito sincera e pessoal, o que nos leva a embarcar nessa viagem. Na introdução do livro, o autor escreve: “Entendi que revelar minhas expectativas, crenças e visões particulares de mundo seria uma maneira honesta de mostrar ao leitor a subjetividade por trás de meus relatos,em vez de tentar me esconder sobre o manto de uma falsa objetividade”. É exatamente essa subjetividade do autor que envolve o leitor. “Observar” o contato com os índios com os olhos e o ritmo de Altheman faz com que o leitor tenha tempo de se habituar e se afeiçoar com o mundo yawanawá.

Um grande aprendizado do livro é também o respeito dos índios em relação aos outros seres humanos, sem se importar com a idade ou a etnia. Eles respeitam, admiram e buscam a troca com outras tribos, ouvem com atenção e inserem em todas as atividades crianças, mulheres, homens e idosos, além de terem agregado rapidamente um branco não só no seu cotidiano como em rituais sagrados de sua cultura, riqueza imensurável de um povo. Aliás, Leandro Altheman não é o único “branco”a tomar o muká. No livro, ele conta que um ano antes um antropólogo “branco” (Txai Terry) também fora iniciado no muká. E depois dele, outros “brancos”também terão esse privilégio. Acredita-se ser esse um desejo dos ancestrais.

Percebe-se a preocupação dos índios em explicar tudo com detalhes para o autor, fazer com que o novo agregado esteja realmente informado sobre toda a história e cultura da tribo. Ele é inserido sem distinção naquele lugar. Além disso, os índios se mostram sempre interessados em ouvir o que Altheman tem para contar. Ali todosse ouvem. Que diferença faria se toda a humanidade seguisse essa linha!

Mas a sábia tolerância dos índios não os fazem ingênuos, pois eles são também fortes e perspicazes. Os yawanawás contam para o autor sobre o período em que os missionários chegaram na tribo. Acolhidos com respeito e hospitalidade, os missionários mostraram claramente se sentirem superior aos índios tanto por causa de sua crença monoteísta, quanto pelo seu acesso à medicina “alopática”. Utilizaram os remédios “dos brancos” como forma de manipular e controlar toda a tribo, tornando-a dependente dos mesmos. Mas os índios perceberam a manipulação e expulsaram os missionários de lá nos anos 80.

Enfim, o livro de Leandro Altheman são viagens a diferentes mundos de um mesmo universo: com ele conhecemos o mundo da floresta amazônica, admiramos e ouvimos as revoadas e os cantos dos pássaros, as vocalizações dos macacos, o movimento dos peixes e das águas do rio Gregório, o mundo misterioso das serpentes; com ele conhecemos mundos invisíveis, oníricos, cheios de cores, símbolos, mensagens, enigmas, sensações, paisagens e seres emblemáticos; com ele conhecemos um pouco do mundo indígena, um pouco dos seus ritmos e cantos, da sua dança, do seu artesanato, das suas relações familiares e sociais, da sua relação com os elementos naturais que lhes rodeiam; e, finalmente, viajamos com ele no mundo do auto-conhecimento, pois enquanto ele “se pesquisa”, refletimos também sobre nós mesmos e mergulhamos um pouco em nosso interior, em nossos desejos e emoções, em nossa personalidade, em nossa forma de lidar com os outros, com a doença, com a morte, com expectativas, com o amor e claro, com os nossos sonhos, tanto os de toda noite como os de toda a vida.

* Patrícia Flores é atriz e estudou na Universidade de Berna, na Suíça, onde vive atualmente.

O livro Muká... proporcionou seu primeiro contato com a medicina cultural indígena