sábado, 29 de maio de 2010

Por que a Bolívia?


" Sem poder atacar a Lula, Serra volta seu rancor contra o presidente Evo Morales da Bolívia."

Leandro Altheman

É esta a inteligentsia que quer governar o Brasil. Que imputa a Lula a pecha de iletrado e ignorante. Enquanto Lula discute o diálogo entre as civilizações, o sujeito atira pedras no vizinho, um governo democraticamente instituído. É mais fácil creditar à Bolívia o problema da violência do que admitir que a segurança está fora de controle em SP. Ou melhor, sob controle do PCC.
Mas, não é a Bolívia o mair produtor mundial de cocaína. O posto cabe à Colômbia, aliado incondicional dos EUA há muitas décadas.
O fato é que a Bolívia, país de maioria indígena, somente agora começa a tomar em suas maõs o seu próprio destino. A Bolívia é uma terra prodigiosa em termos de riquezas minerais. Por séculos foi um quintal explorado pela minoria criolla (brancos descendentes de espanhóis). Antes de Morales era uma verdadeira terra de ninguém onde qualquer um vinha e fazia o que queria (fazendeiros brasileiros também descobriram esta paradisíaca "terra sem lei", especialmente em Santa Cruz) enquanto a maioria da população, indígenas vivendo há milhares de anos naquela terra, continuavam sem os direitos básicos, à saúde, educação e à terra em que seus ancestrais são sepultados muito antes de Colombo. Será este o modelo defendido por Serra para o Brasil?

Evo Morales é índio Aymará, um dos povos mais antigos das Américas. Precursores dos Incas, os Aymará construiram o vasto Reino Tiwanacota, às margens do lago Titicaca, ainda quando os futuros Incas eram apenas uma tribo em meio a tantas outras.
Evo pôs em curso um processo irreversível de autonomia das populações tradicionais, legítimos donos desta riqueza. Um banho de água fria nos interesses do capitalismo. Por isso é alvo de ataques.
Coca

A folha de coca é uma dádiva para os povos andinos. Sem ela é quase impossível trabalhar, se locomover, enfim, viver a uma altitude de 4 mil metros ou mais. Somente a Coca consegue adequar o metabolismo humano a viver nestas altitudes. Por isso para os povos andinos ela é tão importante.

Foram os laboratórios dos EUA que criaram a partir da coca, a cocaína. Inicialmente um anestésico poderoso(ainda utilizado pela medicina), ela se converteu em droga a partir da década de 1920, quando era vendida em farmácias como remédio para dor de cabeça.
Ou seja, em 5 mil anos de história, a coca foi uma planta medicinal, sagrada para estes povos. Em menos de 20 anos, os laboratórios, a transformaram em uma das piores chagas da humanidade.

Os EUA ainda acreditam que a melhor forma de erradicar a cocaína é destruir as plantações na América do Sul. O programa de erradicação da Coca, na Bolívia criou uma reação através de um movimento nacional, os chamados "cocaleros", plantadores tradicionais da Coca. entre eles, surge o líder, Evo Morales. "Erradiquem seus narizes" dizem os cartazes do movimento cocalero. Um claro recado de que os viciados são problema dos EUA, que devem resolver em casa e não usando o seu aparato financeiro-militar contra nações pobres e povos espoliados.
Morales, como líder cocalero e índio aymará luta para resgatar a dignidade de seu povo e a Coca é um símbolo desta resistência.
Socialismo Andino
O fato é que a Bolívia é hoje o maior exemplo de revolução em curso. Enquanto no Brasil ainda estamos no processo de tranformar os pobres em classe média, lá a discussão vai bem mais além.
É socialismo indígena, com discussão ambiental, cultural e espiritual na pauta. Nas alturas andinas, surge um novo paradigma, mostrando que há socialismo sim. Muito além do muro de Berlim, a Bolívia vive hoje a primeira experiência socialista tal qual propôs Mariátegui.

Imagens: 1)Morales em vestimenta tradicional aymará durante cerimônia de posse na antiga cidade aymará de Tiwanaco.
2) A ilustração dá uma idéia da dimensão sagrada da Coca. O gesto de segurar três, ou quatro folhas a frente é uma forma de desejar bençãos. Uma tradicão milenar.
3) a Wipala, bandeira tradicional que simboliza a união dos povos andinos.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

"Sérias Divergências"

...Os caminhos sagrados do Tawantinsuyu nos ensinam a amar à realidade. A cada dia vou amando ainda mais a nossa realidade, assitindo ao ocaso de um império que oprime não apenas as nações do mundo, mas as consciências do planeta...
Leandro Altheman

Está tão óbvia a derrocada dos EUA que só o pior cego não consegue ver: a imprensa comprometida com o mesmo status quo que vai chegando ao seu final. Enquanto a imprensa foca sua atenção no alerta de Hilary sobre as "sérias divergências" entre Brasil e EUA, não enxerga o óbvio em sua frente.
Hillary aparece na TV dizendo que o acordo Brasil-Turquia-Irã torna o mundo mais perigoso, enquanto Obama elogia o acordo e a iniciativa de Lula. Parece que as mais "sérias divergências" não são entre EUA e Brasil, mas sim, entre Obama e Hilary. Eles não acertam o passo, nem do próprio discurso.
O fato é que o Brasil frustrou a agenda militarista dos EUA que preparava uma invasão ao Irã, e precisava se legitimar perante à comunidade internacional. A mentira de Bush sobre as "armas de destruição em massa" que justificaram a invasão ao Iraque ainda estão suficientemente frescas na mémoria para que possam ser lembradas. Lula jogou um balde de água fria nestes interesses, mostrando que o Irã não é tão intransigente , e que há possibilidade de diálogo. Colocou os EUA numa espécie de escanteio moral.
E aí, eis que surge, quase como intervenção divina, o afundamento de um navio sul-coreano, incitando a guerra entre os belicosos vizinhos. A guerra parece inevitável, e os EUA respiram aliviado, pois somente uma guerra pode arejar a sua economia sufocada por décadas de especulação financeira.
Obama representa a face amiga dos EUA. A face que ganhou o mundo no dia D, quando salvou a Europa do fascismo.
Hilary representa os interesses reais e urgentes da indústria bélica e da sua sociedade "teleguiada" pela mídia.
Bela face, mão oculta. Este parece ser o jogo dos bastidores.
O império está ruindo. Mas não há motivos para comemorar. Um gigante quando vai ao chão, faz muito barulho. Podemos esperar por décadas de guerras desencadeadas por este império, que como o romano, permanecerá por muitos anos no poder graças somente aos seus legionários. Agora não pode mais ser sustentado pela sua economia, nem pelo status de democracia e liberdade, encerrado na gestão passada em sua "Guerra ao Terror". O militarismo, a imprensa vendida, e o consumismo anestesiante poderão mantê-los no topo ainda por muitos anos.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

O Soma



Leandro Altheman

Uma tarefa difícil é manter um blog que ao mesmo tempo de propõe a tratar de temas espirituais e políticos. Depois de uma sequência de postagens sobre a formação do pajé dentro do universo Yawanawá, não pude ficar calado diante dos acontecimentos envolvendo Irã e Brasil. Não que eu seja simpático ao fundamentalismo. Pelo contrário. Todo fundamentalismo é execrável, seja ele islâmico ou cristão.
Mas quiz mostrar com o post anterior que o Irã é bem mais do que isso.

Um comentário vindo de um anônimo (agora não mais!) deu-me a deixa para voltar a tratar do assunto apaixonante que é a relação entre o homem e as chamadas plantas de poder.
O comentário fala da combinação entre a acácia e a harmala. Uma versão asiática da nossa combinação entre o cipó (uni, mariri, jagube, ayahuasca) e a folha (cawá, chacrona, rainha, tzacuruna).
A combinação asiática é descrita em textos antigos e pode ter sido uma das muitas versões do Soma, uma bebida capaz de elevar o pensamento de quem a usa em um contexto sagrado. É possível encontrar diferentes descrições para o Soma, como cogumelos, por exemplo e situando-o na Índia e não no Oriente Médio. No entanto me parece que a palavra Soma tenha se tornado mais um conceito de uma bebida espiritual do que propriamente uma bebida específica. Há informações de que uma certa "acácia suma" tenha sido objeto de devoção na Índia. O Soma é descrito tanto nos Vedas hindus quanto no Avesta (livro sagrado Iraniano).
Bem, e o que é a acácia?
Acho que todos já ouviram falar da "sarça ardente" que conversou com Moisés no Monte Sinai. Isto mesmo, é ela.
Recentemente recebi em meu blog alguns comentários também anônimos, de alguém que queria contrapor o uso das plantas de conhecimento, ao conhecimento exposto na bíblia.
Mas, estremeça diante do fato de que a bíblia, pelo menos parte importante dela, pode ter sido revelada através de algum tipo de contato com as plantas de conhecimento. Ou seja, os dez mandamentos podem muito bem ter sido inspirados ou revelados através da acácia.

A bíblia não fala que Moisés tenha tomado a planta. Mas podemos supor que ao descer a montanha e revelar a "verdade" ao seu povo, Moisés tenha guardado certos segredos, para protegê-lo. Ele dizia que Deus havia tomado a forma da "Sarça Ardente". E por que então ainda há tanto preconceito, quando nós, ayahuasqueiros de todas as linhagens, procuramos uma conexão divina através de uma planta? O que há de tão exótico, ou herético, nisso?

Ainda no campo da expeculação, juntando os parcos conhecimentos que tenho sobre o assunto posso supor que mesmo que Moisés não tenha bebido da acácia, ele pode ter entrado em contato com a sua essência. Como? Simples: um jejum prolongado, um pensamento contrito e firme, o esforço físico e a fadiga de subir a montanha podem ter sido suficientes para que ele entrasse em contato com o poder da acácia.

A acácia é a madeira utilizada na construção da Arca da Aliança. No Brasil ela é chamada de Jurema.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Irã



Leandro Altheman

Como não se fala noutra coisa senão no Irã, resolvi fazer um post para que meus leitores possam conhecer um pouco mais sobre esta nação milenar que é o Irã. Ainda que pintados como radicais barbudos pelos EUA (e nós, os latinos indolentes), há muito mais neste admirável país com uma história tão antiga.
Historicamente, o Irã é chamado de Pérsia. Na verdade os persas eram apenas um entre dezenas de povos formadores do multiétnico Irã.

Pêssego

Esta fruta deliciosa tem origem no Irã. Seu nome origina de "maçã pérsica", depois pérsico e finalmente, pêssego.

Um Império Plural

O império persa destacou-se ao longo da história por saber absorver e respeitar as culturas dos povos conquistados. Egípicios, Babilônicos, Sírios e até Gregos fizeram parte deste império que criou as primeiras administrações regionais que se tem notícias na história. Os sátrapas eram governadores nomeados pelo Rei, ou Xá, da Pérsia. Contruiram estradas que percorriam Oriente Médio, Oriente Próximo e Ásia Menor (atuais, Afeganistão, Irã, Iraque, Síria, Turquia e Israel), além do Egito e parte da Grécia.

Conquistados por Alexandre, o Grande, a Pérsia foi o canal de comunicação do Ocidente com o Oriente que permitiu que os conceitos espiritualistas da Índia chegassem à Grécia como "filosofia".

Depois de Alexandre, o Ocidente nunca mais conquistou a Pérsia. Os romanos bem que tentaram,mas foram derrotados três vezes pelo seu exército de cavaleiros-arqueiros. Na última tentativa, um imperador romano foi capturado em combate e passou os restos de seus dias em uma prisão persa.

Zoroastro
O Zoroastrismo, ou Mazdaísmo era a religião original dos persas. Foi a primeira vez que se elaborou o conceito de uma luta entre o Bem e o Mal absolutos. Só que para eles, esta luta acontecia dentro do coração de cada ser humano que deveria optar pelo Bem e lutar por ele em cada esfera de sua vida. O Zoroastrismo influenciou todas as religiões ocidentais posteriores a ele: judaísmo, cristianismo e islamismo.


*(Ele teria nascido de uma virgem)

Cativeiro da babilônia
Na bíblia, os hebreus são libertados do cativeiro da babilônia por intervenção divina. Na história, foram os persas que os libertaram do jugo babilônico. Assim, os israelitas puderam retornar à sua pátria e continuar praticando o seu monoteísmo insosso sem serem incomodados pelos persas. Agora, acrescidos da influência de Zoroastro, puderam, com bases em textos mais antigos, finalmente escrever a bíblia contar a sua historia. (é possivel contar uma história sem antagonista?). Só que os israelitas simplificaram o conceito e disseram: "nós somos o Bem, o Mal são os outros e os papagaios continuam a cantar a mesma ladainha até hoje, sem saber quem cantou primeiro nem de onde veio.
Islã

Sob o Islã, a Pérsia influênciou tão profundamente os até então incultos árabes em assuntos que vão da astronomia a filosofia, da matemática à poesia. O Irã torna-se uma nação de sábios, poetas e escritores, citados até hoje nas universidades do país.

Ocidentalização
Perdendo gradualmente sua soberania em parcelas cada vez maiores de seu território, o Irã ficou sob a influência da Grã-Bretanha e da Rússia, sofrendo forte ocidentalização desde o início do século XX. A descobrta de petróleo fez do Irã um país de muitas riquezas para poucos.
Revolução Islãmica
Agregando a insatisfação com a concentração das riquezas do país e a reação aos costumes ocidentais, o Xá Reza Phalevi é derrubado por uma revolução islâmica, a primeira desta natureza no mundo. A revolução é levada a cabo por milhares de estudantes que vêem no Alcorão o amálgama capaz de sedimentar as relações sociais e humanas do país.
Cinema Iraniano
Apesar das restrições do regime, o país tem grande produção artítica e intelectual, chama a atenção o cinema iraniano, tendo como maior expoente Abbas Kiarostami. Pessoalmente recomendo o filme iraniano Gabeh.

sábado, 22 de maio de 2010

Ah! Kambô, Kambô Hô!



Leandro Altheman

Sou surpreendido por uma comunidade de Orkut na Internet com mais de 1.000 membros ativos de nome Kambô. Em 2001 quando o kambô ainda era praticamente um desconhecido na maior parte do Brasil, não imaginei que ele pudesse tomar esta dimensão. Acredito que meu trabalho de graduação tenha sido um dos primeiros trabalhos acadêmicos sobre este assunto. Suponho que muita gente tenha desistido de abordar um assunto que fica entre a biopirataria e a "pajelança", e arriscar a sua reputação com isso. Resolvi fazer uma abordagem humana contando a história do sr.Francisco Gomes Muniz, ex-seringueiro que viveu entre os índios katukinas na década de 60. O trabalho "Kambô, a Medicina da Floresta" acabou servindo de referência para trabalhos posteriores de antropólogos e é citado em pelo menos um mestrado na UNB.

Não chegou a ser uma surpresa total, contudo, saber que esta medicina ancestral está sob a mira do Ibama e da Polícia Federal. É o que acontece quando a desinformação, a ganância e o oportunismo se juntam para tirar proveito de algo tão nobre quanto o kambô.

Nestes 3 meses de Samakãe que passei entre os Yawanawá também recebi importantes informações sobre o uso do kambô. Entre os Yawanawá há pelo menos três usos consagrados do Kapum como eles o chamam.

O primeiro deles, mais tradicional é o de espantar panema para pegar caça. Neste caso a pessoa que irá aplicar necessariamente seja um bom caçador, se possível, o melhor da aldeia.

O segundo uso é para tirar a preguiça, para dar mais força e disposição. E é claro que neste caso, o aplicador tem que ter o perfil desejado de um "guerreiro" ou trabalhador. Alguém que tenha na sua prática diária uma atitude de ânimo e disposição.

O terceiro seria para recuperação de saúde. Neste caso, sim, o mais indicado é que seja de fato um pajé a aplicar a medicina e de preferência, que esteja de dieta.

A dieta ou "samakãe", implica sobretudo na abstinência sexual, tanto de quem aplica quanto de quem o recebe. Dentro da cosmovisão Yawanawá a dieta é imprescindível para o sucesso da aplicação. Se não é o mesmo que somente"espantar a doença", mas ela tende a voltar, dentro desta visão
Contudo, faço ainda uma ressalva. Hoje, graças ao trabalho pioneiro de Francisco Gomes Muniz, conhece-se mais usos para a vacina do que tradicionalmente se conhecia. Por exemplo, para problemas reumáticos e circulatórios. Mesmo ainda sem a comprovação científica, já foi empiricamente comprovado que o kambô traz uma resposta muito positiva para questões de saúde que não eram muito conhecidas pelos indígenas antes do contato.

Meu temor, é que a rápida popularização da vacina, feita algumas vezes por pessoas não tão bem intencionadas, traga uma reação cada vez mais negativa por parte dos órgãos ambientais, Polícia Federal e ANVISA. E aí temos a imprensa carniceira de plantão só esperando uma oportunidade para jogar ainda mais lama sobre o assunto. Isto me parece meio inevitável na verdade e um processo que já está em curso.

Em outra ocasião falarei sobre o primeiro trabalho acadêmico da Universidade da Floresta - a UFAC do Juruá sobre o uso do Kambô, que inclusive começou a ganhar o mundo não-índio nas imediações do atual campus. Agora que o acervo de serpentes do Instituto Butantã, vizinho da USP, virou cinzas, vale a pena meditar sobre o valor deste patrimônio cultural e biológico que é o Kambô, e que inclusive foi um dos principais motes na defesa da criação da Universidade da Floresta em Cruzeiro do Sul-AC.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

"Pajé é coisa séria"



Leandro Altheman

No início desta série de postagens sobre o Mucá e o Samakãe, havia escrito que uma das informações mais importantes que recebei foi a respeito daquilo que comumente chamamos de "pajé". O termo de origem Tupi-Guarani é utilizado indiscriminadamente para designar qualquer espécie de curandeiro, advinho ou orientador espiritual. No universo da ayahuasca, passou a designar todo aquele que faz uso da bebida dentro de um contexto xamânico. Xamã, aliás, é outra palavra de uso indiscriminado. De origem siberiana, seu sgnificado inicial é "aquele que sabe voar".
No Acre, tenho visto muita gente, brancos e índios jovens que pegam a sua garrafa de ayahuasca, seu violão e partem em busca do "sucesso". Alguns chegam a se declarar "pajés". outros , mais discretos, não o fazem, mas deixam que os outros o chamem assim.
Bem, estive por 3 meses com um ancião Yawanawá de 98 anos que me esclareceu muita coisa a respeito do que é ser pajé. E ele próprio não adota este termo para si. "Nossas músicas de terreiro, são para alegria, não são de cura. doença é coisa séria. Pajé é coisa séria. Não é brincadeira.", explicou-me Vicente Yawarani, ou simplesmente, Yawá .
É o que tem feito muita gente nas rodas de ayahuasca no mundo inteiro, a maioria partindo do Acre. as músicas cantadas são músicas de terreiro, não tem potencial de cura, muito embora a carência emocional e espiritual seja tão grande, que alguém possa até se curar pela sua própria fé.

Yawá conta que na sua cultura existem três diferentes tipos de "pajés", e ainda um quarto, que seria o curandeiro.

Shuintya

É o rezador. Cura através da oração que é feita em um pote de barro geralmente contendo caiçuma de milho ou macaxeira, genipapo ou sumo de tabaco. A oração dura a noite toda e quem a bebe tem de ficar de "samakãe", ou seja uma dieta se abstendo de relações sexuais e certos alimentos, por um período variável.
É nesta categoria que o próprio Yawá se insere, afirmando-se ele próprio um Shuintya . Além dele há apenas mais um Shuintia completo e poucos aprendizes.

Iuvãya
É o cantador. Mas não se trata de qualquer canção. Sua oração cantada é chamada de Iuvã ; uma linhagem especial de conhecimento que usa as forças da natureza para curar as doenças e até mudar o destino de uma pessoa, caso este não seja desejável. existe pelo menos um Iuvãya Yawanawá. Perguntei a Yawá se ele era um Iuvãya, ele disse que apenas ""arremedava". Ou seja, mesmo após 30 anos de estudo, ou mais, ele próprio ainda não se considera um Iuvãya completo.

Romãya

É o pajé propriamente dito. Não canta nem reza. Este tira a doença "chupando" o romã , ou seja, uma "pedra", (energia) que se acumula no corpo gerando uma doença. O romãya tem o poder de transmutar esta energia dando-lhe uma caracterísica positiva. Nào existem Romãya vivos entre os Yawanawá. Esta é uma linhagem mais própria dos Kamãnawa (Clã Katukina) que por sua vez herdaram dos Kulina no médio Juruá. Há incontáveis histórias sobre estes seres quase mitológicos que são os verdadeiros Romaya. Hoje há apenas um Romãya completo entre os katukina, e ele vive na aldeia, seguido por aprendizes avançados e iniciantes.

Ni Puya

É o curandeiro das folhas. Conhece as folhas e suas propriedades curativas e mágicas, como por exemplo, para atrair caça e afastar serpentes venenosas. É um vasto campo de conhecimento que inclui folhas, cascas e raízes de plantas nativas da floresta, ou seja, não cultivadas.
nos meus calculos há apenas dois Ni Puya completos entre os yawanawá (podem haver mais em outras aldeias que não visitei), mas há alguns aprendizes bem avançados.
Em qualquer um destes campos de conhecimento, o estudo leva algumas décadas até que o aprendiz possa se tornar de fato um "pajé" (por mais impreciso que este termo seja).
O objetivo desta postagem é demonstrar que ainda que alguém portando uma medicina tradicional possa ser tido como "pajé", no mundo indígena esta categoria é algo bem mais criterioso. Numa comparação imprecisa, digo que ninguém é cirurgião por ter um bisturi nas mãos. Mas mesmo o melhor dos cirurgiões precisa de seus instrumentos para realizar o seu trabalho.
Na foto acima, Tawaho, filho de Yawá que dedica-se ao estudo do Shuinti, ou seja, da oração.Uma longa caminhada.

A foto ao lado é um pé de Uni (banisteriopsis caapi).

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Cawá Wakin: Uma Tatuagem na Alma


Leandro Altheman

Esta sequência de textos são na verdade uma prévia, um aperitivo do livro que estou escrevendo "Samakãe", sobre a Formação com Mucá. É claro que o uso de uma planta tradicional, em um não-índio, abre portas totalmente diferentes daquelas a que estão acostumados os Yawanawá dentro de sua tradição. Mas estar sobre a orientação de um verdadeiro mestre desta ciência, Sr. Vicente Yawarani, me garate que sejam quais as portas que abrir, terie força e clareza para fechá-las. Como o mucá mexe com os sonhos, todo nosso universo interior é revirado, como um baú cheio de coisas da qual nem nos lembrávamos mais. Com isso, somos convidados a reorganizar nosso universo interno. Mas, cabe a cada um, organizá-lo ou não.
Muita gente já teve vontade de fazer uma tatuagem, mas por se tratar de algo que fica para a vida toda impresso na sua pele, é bom escolher com cuidade o que você vai querer tatuado no corpo. Agora imagine uma tatuagem que é feita não na pele, mas na alma. Algo que ficará impresso para sempre no seu interior, no seu íntimo. Imagine que esta tatuagem não será apenas para a vida toda, mas que se existir vida após a morte, você levará ela por toda a eternidade.
Assim é o mucá, indelével. Depois de tomado ela não sai mais do corpo. Diferente da ayahuasca cujo efeito dura aquelas 4, ou no máximo 6 horas, o Mucá pode passar anos sem que a pessoa o perceba, e de repente, ele volta como um sonho, ou um sentimento estranho que não pode ser desprezado.
Por ser indelével, é que o samakãe, ou seja, a dieta, é tão importante, quanto o próprio mucá. São nos primeiros meses que definem para onde esta força será canalizada. Se for bem canalizada, abre-se um processo de tranformação interior que continua por longos e intermináveis anos, num amadurecimento gradual que não pode ser mais interrompido. Mal canalizado, pode deixar uma cicatriz também indelével, para toda a vida.
Dentro de sua tradição os Yawanawá têm uma expressão para designar este processo: Cawá Wakin. Consagração é uma das tradições possíveis para este termo. Significa que se nesse período, o que a pessoa em formação fizer, se consagrará para toda a vida. Pode-se tornar um grande cantor das músicas tradicionais, ou pintor de kenês ou se iniciar nos longos e difíceis caminhos da oração e da cura. Diz-se que fez Cawá Wakin , consagrou-se em determinada coisa. Infelizmente, o memso acontece para outras coisas também. Uma perturbação, vinda de um grito, um susto, um corte ou queimadura, por mais leve, ou o que quer que seja, tende a ficar impresso de maneira indelével para toda a vida. Uma verdadeira Tatuagem na Alma.
Quem toma o mucá é tratado quase como um bebê nos primeiros dias: não pode pegar frio, nem chuva, nem se aproximar do fogo, nem mexer com materiais cortantes,não ouvir conversas pertubadoras de nenhuma natureza, não ouvir grito ou choro de crianças e por aí vai, a lista é interminável, afinal se é para ter uma tatuagem na alma, é bom escolher uma que nos agrade por toda a eternidade.

terça-feira, 11 de maio de 2010

A Realidade dos Sonhos










Leandro Altheman

O sonho relatado na postagem anterior, aparentemente complexo, foi um dos primeiros que tive durante o samakãe(dieta de formação) do mucá rarê.
Cada porta revela uma idéia, um conceito básico, sobre a importancia dos sonhos para a realidade. Muita gente já deve estar familiarizada com a idéia que os antigos gregos faziam dos sonhos: são eles que dão forma à realidade. Não por acaso, Morfeu é o Deus do Sonho e a memsoa palavra designa também forma (como em morfologia, por exemplo).

Primeira Porta -
Despertar no sonho
O conceito é de que não estaremos totalmente despertos, enquanto não soubermos, dentro de um sonho, que estamos sonhando. Recobrar esta conciência nos permite ampliar o nosso leque de ações possíveis dentro de um sonho, o que trará também uma maior liberdade de ação no universo desperto.

Segunda Porta -
Sentir é Viver
Mostra que mesmo tendo conciência de se tratar de um sonho, as experiências nele vividas tem valor também para o universo desperto. Tais experiências podem servir de alimento espiritual, ou se preferir, emocional para lidarmos com a nossa realidade ordinária. O memso vale apara experiencias positivas ou mesmo aquelas aparentemente, negativas. quem por exemplo sente a dor de um golpe de faca, morre ou perde um ente querido em um sonho, vive de fato esta realidade, pois são acionados no corpo, os mesmos mecânismos químicos de uma experiência "real". Ou seja, mesmo depois de acordar e ver que foi "só um sonho", o banho químico das reações nervosas acionadas pela experiência, continuam lá.

Terceira Porta -
Quem é quem
Realmente é complexo e por vezes contrangedor sonhar com pessoas que conhecemos. às vezes acabamos matando ou agredindo pessoas que não têm nada a ver com nossos problemas, ou ainda, em relações sexuais. Isto sempre me intrigou. Mas se o bigodudo da terceira porta estiver certo, e não for ele também , uma projeção, existem pelos menos estes dois tipos de personalidade dentro de nossos sonhos: pessoas reais e projeções, e é possível que estes dois tipos se confundam nos sonhos. Afinal, mesmo acordados não lidamos diretamente com as pessoas que nos cercam, pois há antes um intermediário que é a nossa propria projeção sobre estas pessoas. Ou seja, mesmo em nosso universo desperto, na maioria das vezes lidamos com os fantasmas de nossa própria mente.

Quarta Porta -
Você pode
A limitação física representada pela cadeira de rodas, é apenas uma metáfora para as nossas limitações diárias. Do mesmo modo que despertar em um sonho, nos torna capazes de superar as nossas aparentes limitações, na nossa realidade ordinária é a mesma coisa. Tudo é uma questão de despertar.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Você sabia que está sonhando?



Leandro Altheman

Parte importante da formação espiritual com o Mucá, acontece através dos sonhos. Aqui descrevo um deles, a que comentarei na próxima postagem.

Trafego entre corredores de uma antiga escola que frequentrei na adolescência. São corredores pouco iluminados e cheios portas que deveriam ser salas de aula. De repente, me dou conta de que naquilo em um sonho. Ora, se é um sonho, então posso atuar nele de forma consciente. Poderei voar?
Afirmativo. E passo então a levitar a cerca de meio metro daquele chão. Observo detalhes como as cores das paredes, o carpete de borracha, as portas de madeira e suas maçanetas. Tudo ali é um sonho, eu sei disso, e me ponho a observar. Poderei atravessar as paredes? Tento, mas minhas mãos não penetram naquele concreto, mesmo sabendo que ele "não existe". Passo então a abrir as portas das salas naquele corredores, sempre me certificando e que as janelas estejam abertas para uma "fuga de emergência".

Primeira Porta
Abro a primeira porta e encontro com um grupo de pessoas conhecidas entre eles reconheço um grande amigo. Todos estão caminhando apressadamente para um objetivo único, como se fossem realizar um trabalho. Pergunto a meu amigo: - Você sabia que está sonhando? Ele me olha perplexo, como se aquela pergunta não fizesse sentido algum. Olho para os demais e faço a mesma pergunta: Vocês sabiam que estão sonhando? Todos se entreolham e fica óbvio que nenhum deles fazia idéia de que aquilo era um sonho e de que foram pegos de surpresa com aquela idéia. saio pelo corredores e encontro vários desconhecidos. a todos eles faço a mesma pergunta: Você sabia que está sonhando? Ninguém sabia.

Segunda Porta
Abro a segunda porta e encontro a um jovem senhor sentado em um sofá segurando uma criança de um ano de idade. Ele segura o bebê pelas axilas e o impulsiona para cima e para baixo, a brincadeira diverte a ambos e a criança sorri satisfeita com a manobra de seu pai. Pergunto a ele: Você sabia que está sonhando? Ele me responde: "- Hoje é o dia do sonhador! O meu dia! É o dia em que posso ver meu filho, pegá-lo no colo e brincar com ele, mesmo sabendo que ele já morreu! Sei que isto é um sonho. Mas são estes breves momentos ao seu lado que me dão forças para continuar a viver."
Coloco a mão em seu ombro e lhe digo: - Você é um homem feliz, mais feliz que a maioria das pessoas que não sabem quando estão sonhando e tampouco estão acordados.

Terceira Porta
Na terceira porta há dois homens: um está sentado e outro está de pé. Ambos estão de fronte a uma mesa com centenas de papéis empilhados. O que stá sentado parece ser mais velho e exerce um papel superior hierárquico sobre o outro, mais jovem. Pergunto-lhe: -Você sabia que está sonhando? Ele me responde:
- Claro que sim!
- Mas então, porque escolhe fazer algo tão entediante?


Ele me olha com olhar severo, como se sentisse ofendido com aquela pergunta. Aquela era sua atividade cotidiana e ele a achava extremamente séria e importante. Tanto que concientemente utilizava o tempo de seu sonho para realizá-la. Não cabia a mim julgar o que era importante ou não. Aquela era a sua vida. O seu assistente nos olhava a certa distância sem entrender nossa conversa aparentemente sem sentido algum. Obviamente, ele não sabia que estava sonhando. Lancei-lhe uma nova pergunta: - Quando sonhamos nos deparamos com pessoas vivas, ou são apenas projeçoes da nossa mente? Ele respondeu: - Existem as duas coisas: pessoas que estão sonhando como você e outras, apenas projeções.



Quarta Porta



Na quarta porta, encontrei com uma colega minha. Ela estava em uma cadeira de rodas, sendo que na vida desperta ela é totalmente sã. Disse a ela: - Você está sonhando. Te levanta, você pode andar. Ela me olhou de forma desconfiada. Seu olhar ironizava o fato de obviamente eu não ser nenhum pastor capaz de operar milagres. Mesmo assim, eu a segurei em meus braços e disse: -Mexe estas tuas pernas, você pode! Mas ela continuava imóvel. Então a segurei mais próxima de mim. Pude sentir seu coração batendo junto ao meu. Nossos corações foram equilibrando suas batidas até que se soaram em uníssono. Neste momento, suas pernas ganharam vida e ela pode finalmente andar.







segunda-feira, 3 de maio de 2010

Mucá Pae Oreiá - O Olhar Além do Olhar

Leandro Altheman


Desconhecida da maior parte das pessoas, o Mucá, começa a ser revelado. Ou melhor, começa a se revelar, pelo que creio, seja sua própria vontade. Trata-se da planta mais sagrada do povo Yawanawá.

Diferentemente da ayahuasca, o mucá não promove as visões amplamente conhecidas por "mirações".

Mas é aos pés do mucá ou rarê, que aqueles que decidem tornarem-se os sábios de seu povo, fazem o seu juramento. Seu poder é manifesto através de sonhos muito lúcidos e seu efeito é percebido não em 4 horas de miração, mas em alguns anos para que de forma lenta e gradual, traga maturidade ao pensamento, e aos sentimentos.

Nuke Shinã Oreiá

Além do nosso pensamento. Esta seria uma tradução aproximada da frase dita pelo pajé, ou mais precisamente, Shuintya (Mestre, orador) quando ele dá o mucá para alguém. No entanto a palavra shinã é mais ampla do que pensamento apenas, ela designa também sentimento e o próprio coração também é shinã, ou shinã raká - aquele que distribui o pensamento/sentimento. Coração também é uinti , palavra que pode designar também visão. Ainda que anatomicamente o coração tenha pouco a ver com a visão, do ponto de vista espiritual e simbólico, quem realmente tem o poder de enxergar é o coração. Veru é olhar, mas também pode designar a alma, espírito ou essência (dos vivos). É algo que os discipulos do mucá tem que aprender e que mais adiante vou explicar a relação entre cada um deles.

Durante o Samakae (dieta de formação) ensina-se sobre o pensamento além do pensamento e o olhar além do olhar. Um pensamento capaz de transformar a própria realidade, por estar plantado além do pensamento comum, ordinário. Do mesmo, modo, o olhar além do olhar é uma forma de responder, não às consequências do nosso mundo visível, mas dialogar com o abstrato e invisível que anima e dá forma, conteúdo e concretude ao mundo visível. Nele, uma confiança depositada no âmago, não apenas de uma planta, mas através dela, pois além está o poder superior que ela, como ponte, manifesta. Temos em nossa língua uma palavra que muito se aproxima deste conceito: Fé.

*Trata-se de uma raíz que somente olhos muito bem treinados são capazes de identificar em meio à floresta. Antes que alguém se aventure a buscá-la, aguarde nas próximas postagens quando escreverei sobre os seus riscos, que não são pequenos.