quarta-feira, 19 de maio de 2010

"Pajé é coisa séria"



Leandro Altheman

No início desta série de postagens sobre o Mucá e o Samakãe, havia escrito que uma das informações mais importantes que recebei foi a respeito daquilo que comumente chamamos de "pajé". O termo de origem Tupi-Guarani é utilizado indiscriminadamente para designar qualquer espécie de curandeiro, advinho ou orientador espiritual. No universo da ayahuasca, passou a designar todo aquele que faz uso da bebida dentro de um contexto xamânico. Xamã, aliás, é outra palavra de uso indiscriminado. De origem siberiana, seu sgnificado inicial é "aquele que sabe voar".
No Acre, tenho visto muita gente, brancos e índios jovens que pegam a sua garrafa de ayahuasca, seu violão e partem em busca do "sucesso". Alguns chegam a se declarar "pajés". outros , mais discretos, não o fazem, mas deixam que os outros o chamem assim.
Bem, estive por 3 meses com um ancião Yawanawá de 98 anos que me esclareceu muita coisa a respeito do que é ser pajé. E ele próprio não adota este termo para si. "Nossas músicas de terreiro, são para alegria, não são de cura. doença é coisa séria. Pajé é coisa séria. Não é brincadeira.", explicou-me Vicente Yawarani, ou simplesmente, Yawá .
É o que tem feito muita gente nas rodas de ayahuasca no mundo inteiro, a maioria partindo do Acre. as músicas cantadas são músicas de terreiro, não tem potencial de cura, muito embora a carência emocional e espiritual seja tão grande, que alguém possa até se curar pela sua própria fé.

Yawá conta que na sua cultura existem três diferentes tipos de "pajés", e ainda um quarto, que seria o curandeiro.

Shuintya

É o rezador. Cura através da oração que é feita em um pote de barro geralmente contendo caiçuma de milho ou macaxeira, genipapo ou sumo de tabaco. A oração dura a noite toda e quem a bebe tem de ficar de "samakãe", ou seja uma dieta se abstendo de relações sexuais e certos alimentos, por um período variável.
É nesta categoria que o próprio Yawá se insere, afirmando-se ele próprio um Shuintya . Além dele há apenas mais um Shuintia completo e poucos aprendizes.

Iuvãya
É o cantador. Mas não se trata de qualquer canção. Sua oração cantada é chamada de Iuvã ; uma linhagem especial de conhecimento que usa as forças da natureza para curar as doenças e até mudar o destino de uma pessoa, caso este não seja desejável. existe pelo menos um Iuvãya Yawanawá. Perguntei a Yawá se ele era um Iuvãya, ele disse que apenas ""arremedava". Ou seja, mesmo após 30 anos de estudo, ou mais, ele próprio ainda não se considera um Iuvãya completo.

Romãya

É o pajé propriamente dito. Não canta nem reza. Este tira a doença "chupando" o romã , ou seja, uma "pedra", (energia) que se acumula no corpo gerando uma doença. O romãya tem o poder de transmutar esta energia dando-lhe uma caracterísica positiva. Nào existem Romãya vivos entre os Yawanawá. Esta é uma linhagem mais própria dos Kamãnawa (Clã Katukina) que por sua vez herdaram dos Kulina no médio Juruá. Há incontáveis histórias sobre estes seres quase mitológicos que são os verdadeiros Romaya. Hoje há apenas um Romãya completo entre os katukina, e ele vive na aldeia, seguido por aprendizes avançados e iniciantes.

Ni Puya

É o curandeiro das folhas. Conhece as folhas e suas propriedades curativas e mágicas, como por exemplo, para atrair caça e afastar serpentes venenosas. É um vasto campo de conhecimento que inclui folhas, cascas e raízes de plantas nativas da floresta, ou seja, não cultivadas.
nos meus calculos há apenas dois Ni Puya completos entre os yawanawá (podem haver mais em outras aldeias que não visitei), mas há alguns aprendizes bem avançados.
Em qualquer um destes campos de conhecimento, o estudo leva algumas décadas até que o aprendiz possa se tornar de fato um "pajé" (por mais impreciso que este termo seja).
O objetivo desta postagem é demonstrar que ainda que alguém portando uma medicina tradicional possa ser tido como "pajé", no mundo indígena esta categoria é algo bem mais criterioso. Numa comparação imprecisa, digo que ninguém é cirurgião por ter um bisturi nas mãos. Mas mesmo o melhor dos cirurgiões precisa de seus instrumentos para realizar o seu trabalho.
Na foto acima, Tawaho, filho de Yawá que dedica-se ao estudo do Shuinti, ou seja, da oração.Uma longa caminhada.

A foto ao lado é um pé de Uni (banisteriopsis caapi).

Um comentário:

  1. Oi Leandro,
    legal te encontrar de novo e aprender um pouco mais sobre pajes e xamas,

    um grande abraco
    Juliana

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