terça-feira, 28 de novembro de 2017

Será mesmo doce a rapadura?

Dando seguimento ao bate-papo iniciado pelo pesquisador Juarez Bonfim em sua coluna no Jornal da Bahia e continuado por Jairo Lima no seu blog Crônicas Indigenistas a respeito da Primeira Conferência Indígena, começo com essa provocação: será mesmo doce a rapadura?

Juarez usa a metáfora da rapadura para falar sobre a ayahuasca, mais especificamente sobre os pesquisadores que sem provar da sua doçura, elaboram verdadeiros tratados sobre sua origem, significado cultural, expansão geográfica e etc.

A objetividade científica pressupõe a separação entre sujeito e objeto, ao menos é claro, no paradigma tradicional. Outras possibilidades epistemológicas estão a ser experimentadas.

A chave parece ser portando, a experimentação. O fenômeno vivenciado seria o suficiente para explicar tudo o que e necessário se saber. É uma possibilidade. Quantas pessoas após uma cerimônia trazem como explicação ‘a ayahuasca (ou o daime, ou o vegetal) me disse’. É certo que para questões íntimas, um mergulho no nosso universo emocional - constantemente anestesiado das mais diferentes maneiras - pode ser suficientemente revelador. Mas até que ponto ‘a ayahuasca me disse’ não são projeções do eu – superficial ou profundo? E até que ponto não se tratam de reproduções de um mesmo sistema religioso, científico, filosófico, político, social, cultural, etc...

A questão é que se tratando da ayahuasca, mesmo prová-la, não dá garantias de que a experiência traduza uma realidade ‘objetiva’. Aliás, o que é realidade objetiva? Não estamos lidando com uma planta-ser capaz de criar realidades? Que realidades queremos/podemos cocriar com ela?
São questões para além do objeto desta conferência, mas que estão subjacentes ao uso da ayahuasca.

Podemos falar da domesticação de uma planta, e de uma técnica/arte/ciência milenar, desenvolvida pelos povos originários em torno de alguns objetivos entre os quais poderia elencar: Cura, Guerra, Amor, e ... Investigação. Saber o que está à volta, assenhorar-se das propriedades da natureza; esta parece ter sido uma das linhas de desenvolvimento de uso da ayahuasca.

Penso que os primeiros pajés tenham sido exatamente isso: pesquisadores, cientistas, investigadores.  

Admitir a possibilidade da ayahuasca como 'instrumento' de investigação significa aceitar duas 'heresias' epistemológicas: a primeira, de que uma planta possa ser um sujeito de conhecimento, e a segunda, que um 'pesquisador' nesses termos é a um só tempo sujeito, objeto e laboratório de sua pesquisa. 

O fato é que todo ayahuasqueiro ao seu modo é um pesquisador. Ao menos um pesquisador de si mesmo. É uma das possibilidades da ayahuasca. O pensamento ocidental fundamenta-se na ideia de que os sentidos são ilusórios e que a verdadeira razão deve se sobrepor a eles. A possibilidade de conhecimento através da ayahuasca é o oposto dessa premissa. Trata-se de ampliar os sentidos para enxergar mais adiante.

Tomar a ayahuasca é sobre ir além da aparente ‘doçura da rapadura’.

Sobre a Conferência

Acredito que estas questões não devam ainda estar presentes nessa primeira conferência, que tem outras bem mais práticas para serem discutidas e que, espero, sejam bem pautadas: a sustentabilidade das plantas (especialmente o cipó, que está severamente ameaçado em partes da amazônia), a livre circulação dos pajés e aprendizes com suas medicinas, a representatividade adequada de pajés e aprendizes nos centros urbanos, entre outras.

Contudo, não deixo de vislumbrar, nesse movimento que alguns enxergam como 'bizarrismo exotérico', uma incrível oportunidade, especialmente para os indígenas, mas na verdade, para todos os envolvidos. 

Há uma oportunidade nova, surgida a partir da possibilidade de contato entre estes dois grupos humanos tão diversos: índios da amazônia e brancos de classe média das grandes cidades brasileiras. 

Primeiro, porque significa uma possibilidade de criação de laços de empatia - um raro tesouro em nossos dias - empatia que, se bem dirigida, pode trazer benefícios concretos para comunidades indígenas na amazônia. Em verdade, já estão trazendo, das mais diversas formas. 

Segundo, porque os indígenas no Brasil, estão sempre estão sob constante ameaça. Tais ligações podem concretamente trazer aliados, que embora não sejam numerosos, estarão em postos-chave na sociedade. 

Em tempos de lutas identitárias, a ayahuasca, aliás, apresenta mais essa 'heresia': identidades permeáveis ao outro. 

Vejamos, portanto, o que seguirá desta conferência. 

Já considero bastante satisfatório que os povos indígenas estejam promovendo um encontro para debater algo que é seu por origem. 



  

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

O ‘Guia’ Teologicamente Incorreto

Estes dias conversando com uma amiga - revisora ortográfica com mais de vinte anos de profissão – a mesma recordou uma história no mínimo curiosa. Uma sociedade beneficente evangélica solicitou a correção ortográfica do relatório anual da instituição. A sociedade era responsável por controlar instituições como escolas, faculdades e hospitais. O relatório tinha mais de sessenta páginas – nada demais para uma revisora experiente e acostumada a trabalhar por horas a fio para entregar o serviço nos prazos pré-estabelecidos.
Lá pelas Altas Horas, com o trabalho de revisão já iniciado, a revisora recebe a visita de um dos diretores da instituição. O objetivo do diretor era fazer algumas exigências específicas aquela revisão.
- Algumas palavras não podem estar no relatório...
- Sim, e quais são?
- Por exemplo... Entidade
Lá no texto... a entidade sem fins lucrativos... deveria ser substituída, para evitar que a ‘entidade sem fins lucrativos’ viesse a ser confundida com um caboclo ou preto velho que não pede nada além de um charuto ou cachaça.
A revisora, pacientemente, continuou ouvindo as exigências.
- Sim, e o que mais?
- Incorporação...
Bem, com isso o trecho: ‘novas normas foram INCORPORADAS ao estatuto’ deveriam passar por mudança. E enquanto ela me conta a história imagino o novo o ‘estatuto’ dando tremeliques e pulinhos, girando freneticamente sobre si mesmo, como nos terreiros de umbanda, ou mais comum ainda, nas próprias igrejas pentecostais.
- Outra: Guia. Guia não pode.
No relatório estava lá: ‘o guia de bolso criado para facilitar o acesso à informação...’. Por instante, minha imaginação me leva à ideia de que no futuro, talvez possamos levar nossos diferentes ‘guias’: caboclos, preto-velhos, nossas onças, águias e jiboias, nos nossos bolsos, como smartfones, acionados a um simples toque na tela ‘touch screen’.
- Espírito, alma. Não pode.
Lá se vai aquela velha expressão tal coisa é a ‘alma do negócio’... e vi nisso talvez certa vantagem, já que talvez fosse melhor, para o português e para a noção geral da realidade, apresentar o ‘negócio’, do jeito que ele é: sem alma.   
E depois de me contar essa conversa, a amiga revisora vaticina:

-Oxalá, meus clientes nunca leiam isso...