domingo, 4 de março de 2012

Dançarino nas teias da realidade III


Ato III – Nissum

Calquei meus pés na enlameada Vila São Vicente. Estava frio, chuvoso e escurecia rapidamente.

Tomei um café para espantar o frio.

Não havia luz na comunidade porque uma árvore havia caído nos fios de transmissão.

Sem TV, a única luz era uma pequena lanterna de emergência em cima do balcão que iluminava um exemplar de um jornal local, a Tribuna do Juruá.

Como não havia mais nada para fazer, comecei a ler, desinteressadamente, folheando suas páginas.

As notícias não podiam ser piores: agressões violentas, tráfico de drogas e corrupção. Uma notícia em especial me chamou a atenção:

Um jovem de aproximadamente 23 anos, apaixonado por uma garota de 15, matou-a a facadas quando soube que a família dela era contra o relacionamento.

Ainda sentia em mim, o sopro sagrado do último vê kuxi, que me pôs de pé de novo como guerreiro armado apenas de esperança.

Senti neste momento um calafrio, uma tontura como se de repente, tivesse sido tomado de assalto pela loucura deste mundo. É o que os yawanawá denominam nissum uma espécie de tonteira, loucura, ou qualquer tipo de desequilíbrio mental.

Trinquei os dentes e vi o mundo rodar. Máquinas destruindo a tudo, para satisfazer aos nossos desejos. Crimes acontecendo por pura falta de conhecimento e sobretudo, de amor.

Como nos faltam os horizontes do amor. Eles são capazes de dar cor à vida nos momentos mais difíceis. Mas cresce a cada dia o apelo incessante da loucura deste mundo, como uma prece, um mantra que não para de se auto-entoar.

Vi quão caótica é a realidade e que a aparente normalidade é tão somente um acordo, um contrato entre demências parelhas.

Vi que toda doutrina, do cristão ao comunista, é tão somente uma luz, para que não se percam as esperanças no caótico em que fomos lançados. Quem faz o bem ao outro, faz na verdade muito mais a si mesmo, pois garante manter viva a esperança e a sanidade do pensamento.Quem luta pelo outro, luta na verdade por si mesmo, para manter a mente sadia, em meio à tanta loucura.

Perturbado com o nissum, fui deitar, atado tão somente à esperança, aquela estrela que eu vi brilhar.

Dançarino nas Teias da Realidade II


Dançarino nas teias da realidade I

Nenhum comentário:

Postar um comentário