Somos híbridos. E isso é um fato. Ao tentar delimitar as
fronteiras do que seria a ‘civilização ocidental’ nos deparamos com inúmeros e
insolventes problemas. Podemos começar traçando a origem de nossa civilização
ocidental na Grécia Antiga. Mas como negar nesta, por exemplo, a influência da
primordial, e africana, civilização egípcia?
Quantos amálgamas foram necessários, para que os antigos gregos,
absorvessem, via mediterrâneo, influências egípcias, cretenses, fenícias,
mesopotâmicas?
Imaginem nosso ‘civilização ocidental’ sem os números
indo-arábicos? Teríamos avançado tanto no campo da engenharia, sem a
contribuição dos árabes? Que mais? Medicina. O que seria da medicina sem
Avicena. O que seria da filosofia ‘ocidental’, sem Averróis e os tradutores moçárabes?
Como ibéricos, deveríamos compreender melhor do que ninguém
o sentido de sermos híbridos: celtas, ibéricos, romanos, germânicos (visigodos
e suevos), iranianos (alanos), moçárabes do norte da África, judeus, ciganos. A
mais ocidental das penínsulas europeias é também a mais mestiça. Já chegamos à
América bastante misturados, e continuamos nos misturando. Seria possível
definir a cultura, ou a ‘civilização’ em que estamos inseridos descartando estas
contribuições?
Somos uma civilização ocidental fundamentada em cima de uma
religião oriental. O Cristianismo é sobretudo oriental, latinizou-se, é
verdade, mas é possível pensar o cristianismo sem a influência decisiva do Zoroastrismo.
A antiga religião persa foi quem nos legou o maniqueísmo de um mundo dividido
entre bem e mal. Ainda que se questione se tal legado é antes benção, ou
maldição, o fato é que a concepção surgiu na Pérsia, atual Irã. Antes a ética
era fundamentalmente tribal e as noções de bem e mal estavam associadas ao
ethos local.
O Judaísmo, esse sim, o supra-sumo do etnocentrismo elevado
à condição divina. Ocidental? Talvez. Mas esse sem dúvida é um traço excludente
que permeia nossa civilização. Nós, e os outros.
Judaíco-Cristã, greco-romano. É o que define ‘civilização
ocidental’, ainda que seus pilares tenham surgido no oriente, próximo, médio ou
até distante. Há quem alegue a influência do budismo, por exemplo, em concepções
filosóficas ‘ocidentais’ posteriores.
Mas quem somos ‘nós’ e quem são os ‘outros’? A divisão
parece ser muito mais fruto de nossa própria vontade de nos diferenciar do que
de algum dado real ou concreto. O expediente vem de longa data. Os gregos se
diferenciavam dos ‘bárbaros’: todos aqueles que não falam grego (os romanos
eram a princípio ‘bárbaros’ para os gregos). Os judeus falam dos ‘gentios’, a ‘gentalha’
que não foi escolhida para ser salva.
Recentemente, li no face, uma postagem que juntava índios,
negros e islâmicos numa mesma panela. Eram os ‘outros’, capazes de aberrações
inomináveis como por exemplo, a mutilação genital. Contra eles, deveríamos
estar vigilantes, a fim de manter nossa civilização a salvo.
A mutilação genital acontece em mulheres em algumas tribos
da África, e definitivamente, não é um ‘valor’ que parece ter a capacidade de
ser absorvido, ou adquirido, pela nossa civilização.
O apelo de vigilância contra o multiculturalismo parte de
Olavo de Carvalho, o mesmo que tem procurado relativizar as torturas e mortes
da inquisição. Para Olavo, teria sido apenas um ‘complô’ dos protestantes a fim
de desacreditar a igreja católica. Segundo Olavo, as mortes na fogueira foram
bem menos cruéis do que se imagina, já que as vítimas morriam asfixiadas e não
queimadas. Que alivio!
O que será que Olavo diria das teses do antropólogo mexicano
Frank Díaz, de que na verdade, os relatos de sacrifícios humanos na América
seriam apenas invenções da igreja católica para justificar a tomada de terras?
O que pode ser mais etnocêntrico do que justificar as
atrocidades de sua própria ‘civilização’? Um comportamento bastante ‘tribal’ eu
diria.
Ao fim, o que define ‘nós’ dos ‘outros’, parece muito mais
ser explicável em termos de medos irracionais do que por parâmetros objetivos.
Somos híbridos, e quando for pensar no assunto das chamadas ‘trocas
culturais’ que tanto assustam a Olavo e seus seguidores, prefiro pensar não nas
mutilações genitais, mas por exemplo, em uma técnica ancestral de tecidos de
povos andinos na Bolívia que estão sendo utilizadas para reparar danos
cardíacos.
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