quinta-feira, 6 de abril de 2017

Um relato de caça e trabalho entre os Yawanawá

Infelizmente, o preconceito sobre a relação dos povos indígenas com o trabalho, continua se perpetuando, por meio da desinformação e de gente mal intencionada, que somente consegue ver o outro como mercadoria a ser explorada.  

Neste Abril Indígena, quero dar essa singela contribuição para dirimir esse preconceito, publicando um trecho de meu livro Muká, a Raiz dos Sonhos que relata um período de intenso trabalho em que convivi com o povo Yawanawá, no Alto Rio Gregório.

Junto com Nixiwaká e seu grupo de caçadores, subimos o rio Gregório até o Caxinauá.

Lá está o acampamento de caça, a aldeia e o terreiro sagrado dos ancestrais.

Durante a subida, chamou-me a atenção o alto grau de organização dos yawanawá em suas tarefas. Numa operacionalidade impressionante as funções são rapidamente preenchidas por cada pessoa. 

Enquanto um grupo subia o rio de barco, um grupo menor ia por terra, colhendo frutos e obtendo informações sobre o rastro de animais que poderiam ser, posteriormente, caçados.
Cinco ou seis taperas feitas de paxiúba e cobertas de palha de cocão formavam o acampamento de caça. Os yawanawá mostravam-se bastante à vontade naquelas habitações precárias. Não havia paredes. As taperas eram apenas uma pequena área coberta de palha, elevada do solo por palafitas. O assoalho de paxiubão recebia apenas um ou outro prego ou então era amarrado com cipós.

Durante o dia as infestações de piuns tornavam qualquer passeio pela praia do rio praticamente insuportável. Só na floresta densa havia algum refúgio para os terríveis piuns. Depois do almoço, ao meio dia, éramos obrigados a nos cobrir com lençóis mesmo diante de todo calor.

Mas havia fartura de alimento. Carne de paca, queixada, macaco ou jacaré, ou às vezes, peixes do rio chegavam ao acampamento a todo o momento.  

Acompanhei uma destas caçadas noturnas. Dois grupos se dividiram. Um grupo de caçadores foi para a floresta, enquanto, um grupo menor subiu o rio Gregório. Nixiwaká achou mais prudente que eu acompanhasse o grupo do rio.
Nixiwaká ia à frente com uma lanterna, enquanto um jovem yawanawá, apelidado de ‘Abdão’ varejava lentamente o bote rio acima. Obviamente não se usa motor, para não afugentar a caça. No lugar disso, usava-se um ‘varejão’ - pau cumprido com a qual o piloto toca o fundo do rio e literalmente ‘empurra’ a canoa de maneira semelhante às gôndolas de Veneza.

A princípio acreditei que subiríamos o rio para dar início à caçada a partir de certo ponto em terra firme, mas o fato é que a caçada já havia começado desde quando saímos do porto.

O objetivo era com a lanterna, avistar os olhos de algum animal noturno, em especial as pacas que vêem às praias e barrancos e ficam ‘encandeadas’ com o brilho da lanterna, ‘se esquecendo’ de fugir. Na foz de um pequeno igarapé que despejava suas águas no Gregório, Nixiwaká focou sua lanterna sobre um balseiro de paus e folhas, fazendo refletir a luz nos olhos de um jacaré.
Fazendo o mínimo de barulho possível, ‘Abdão’ aproximou a canoa do barranco. Ele e Nixiwaká não trocaram um apalavra, mas adivinhavam as intenções um do outro. Sem tirar o foco da lanterna dos olhos do jacaré, Nixiwaká mirou sua espingarda e disparou.

Abdão arrastou o animal para dentro da canoa, ainda com vida, conforme iriam comprovar seus roncos guturais durante o restante da noite.

Seguimos rio acima com o novo passageiro. À noite era possível apreciar a natureza sem ter que se esconder dos piuns. Paramos nossa canoa em uma bela praia de areia branca. O céu estava completamente estrelado naquela madrugada. Tomamos um rapé naquele lugar.

A madrugada já ia longe e todos, sem exceção estavam bastante cansados.

Durante a decida, já próximos ao acampamento, encontramos mais uma paca. Estava em um barranco baixo. Desta vez o tiro foi certeiro e Nixiwaká acertou já no primeiro disparo. O “quebra-jejum”do dia seguinte estava garantido.

Os caçadores do grupo que entrara na mata trouxera dois tipos de macaco. Os ‘Isu’- macacos-preto e os ‘Ru’- capelões ou guaribas.

Meninas com mais de dez anos ajudavam na faina de ‘tratar’ (limpar) os animais. Um trabalho que certamente traria horror a uma menina de família de classe média era feita sem nenhum problema por estas pequenas. Vi macacos inteiros serem mergulhados na água quente para lhe retirar os pêlos do corpo, e com a mesma destreza suas mães manejavam as afiadas facas de cozinha para retirar os ‘fatos’ (tripas) dos animais.

Enquanto as mulheres ‘tratavam’ os peixes e animais, os homens, exaustos da caçada noturna, ou iam dormir, ou iam antes retirar os carrapatos acumulados durante a noite na floresta.
Pela noite o jantar era servido pelas mulheres e havia uma grande animação.

Os homens não mexiam nas panelas. Não vi nenhum homem sequer olhar dentro da panela. Isto pareceria falta de educação ou grosseria. Somente as mulheres dos chefes de família eram quem serviam o alimento. Entre eles havia também o mesmo costume do seringal de servir antes o caldo, para que somente depois de acrescida a farinha e feito o pirão fosse servido o ‘nami’ (carne) ou peixe.

Estas mulheres faziam todos os dias o milagre da multiplicação. Talvez se deixassem para que cada um se servisse conforme o seu apetite é certo que alguns ficariam sem comer. Elas exerciam com maestria o seu papel de matriarcas que cuidam do grupo todo. Em sua perfeita matemática faziam com que todos ficassem satisfeitos. Jamais passei fome em nenhum momento, tampouco senti aquela desconfortável sensação comum e desprezível que se tem quando se sai de um restaurante ou uma churrascaria de se estar ‘empachado’ (empanturrado).

Havia também um delicioso suco que era preparado com uma fruta da mata conhecido na região como abiorana.

Algo que me impressionava entre os yawanawá era a sua capacidade de se adaptar ao chamado “mundo do branco”. Itens produzidos por nossa sociedade são por eles utilizados com grande habilidade, maior até, diria do que muitas vezes os brancos que os produzem.
Facas, terçados e machados, por exemplo, haviam tornado-se itens indispensáveis ao seu modo de vida. Seus instrumentos são amolados diariamente, utilizando para isso, limas e esmeris. Com madeira e couro de animais produzem bainhas e cabos para eles.

O fascínio, a admiração e o reconhecimento da utilidade destes objetos em suas vidas faz com que às vezes eles denominem o homem branco como sendo os “Ruwe Nawá” – cuja tradução aproximada seria ‘povo da pedra colorida’ - uma alusão aos metais que em contato com o fogo mudam de cor e emitem o brilho da fundição. Um exemplo foi o de uma faca que fora dada de presente que após algum tempo de uso teve o seu cabo quebrado. Seu dono, um caçador yawanawá, produziu a partir de madeira e restos de sandálias velhas, um cabo tão eficiente e ergonômico quanto o original.

As espingardas recebem um tratamento especial como se fossem ‘animais de estimação’ ou quase ‘membros da família’. Elas são carinhosamente lubrificadas com óleo todos os dias. Algumas ganham adaptações feitas de madeira, para torná-las mais anatômicas, ou então pinturas de kenês (desenhos tradicionais) em preto e vermelho, lembrando as cores do jenipapo e do urucum.
Cada caçador possui um instrumental que é mantido em uma pequena sacola plástica a fim de poupá-los da chuva e da forte umidade amazônica. O material consiste em cartuchos vazios, pólvora, chumbo e espoletas, bem como um pequeno molde em madeira feito por eles mesmos que servem tanto para socar a pólvora nos cartuchos, quanto para moldar o chumbo, quando estes querem um projétil maior, destinado ao abate de caças grandes como queixadas e antas.

A pólvora é socada dentro dos cartuchos juntamente com a raspa de determinadas madeiras, que servem para dar pressão à pólvora e ajudar na explosão.
Não há o mínimo desperdício de nenhum material, principalmente por conta da escassez. Das caçadas em que presenciei a sua preparação, vi que cada caçador não partia com mais do que meia-dúzia de cartuchos cada um. Por esta razão sua pontaria tinha de ser boa e um tiro perdido, sempre era motivo para uma breve lamentação. Pelas mesmas razões, por maior que seja a abundância de animais, a caça é limitada pela escassez de munição.

Todos homens são em algum momento, caçadores, pescadores e eventualmente, coletores (principalmente de açaí, bacaba, patoá e buriti).

A caça é dividida entre os grupos familiares, seguindo a critérios culturais de parentesco e afinidade, o que faz com que a retribuição mantenha as famílias sempre abastecidas, sem que seja necessário o caçador se ausentar todos os dias de sua casa.

Quando acampados em grande número, a caça ganha um caráter de atividade coletiva, ainda que nos momentos chaves, o ato de abater o animal seja de fato, individualizado, ganhando por assim dizer, uma ‘autoria’ que mais tarde será festejada nas narrativas do acampamento.

Caças menores, como aves e pequenos roedores, são denominados embiaras e em ocasiões como esta são sistematicamente desprezadas, pois seu abate significa gasto de munição para uma caça que vai alimentar apenas poucas pessoas. A busca voltava-se para as caças maiores seguindo exatamente esta ordem: anta, veado, queixada, catitu, pacas e macacos em geral.

Barcos e motores também já haviam sido totalmente incorporados ao modo de vida dos yawanawá. Entre eles há exímios pilotos, hábeis em manejar canoas com ‘motor de rabeta’ entre obstáculos proporcionados por paus e balseiros no raso rio Gregório.

O uso intenso de botes e motores sob condições adversas causa um desgaste excessivo e constantes danos nos componentes dos motores. No entanto, os yawanawá provavam ser capazes de promover os consertos necessários, com o mínimo de ferramentas e materiais, prolongando a vida útil dos equipamentos e diminuindo a dependência externa para estes reparos.

A raiz destas adaptações dos yawanawá a um novo modo de vida que dialoga com as tradições é sempre apontada na direção de uma figura histórica quase lendária: Iva Istihu.
Ao seu comando, os yawanawá tornaram-se indispensáveis para a manutenção do Seringal, provendo inicialmente desde caçadores e mateiros, para posteriormente converterem-se em produtores de milho, banana, macaxeira, mel de cana e animais de criação como galinhas, patos, porcos, carneiros e bois.

Rayá

A caça não era, contudo, a única atividade desenvolvida naqueles dias pelo grupo de vanguarda yawanawá. Havia muito trabalho, afinal de contas, pois objetiva-se construção de pequenas casas de paxiúba para a formação espiritual no terreiro do muká e um alojamento para os professores, no alto do barranco.

- Rayá. É como a gente chama trabalho na nossa língua. Engloba uma série de atividades, mas não a caça e a pesca por exemplo. Isso que agente esta fazendo é rayá waki- trabalhar. Desde o plantio e a colheita de mandioca, à construção de casas, ou o artesanato de cocares, brincos, pulseiras e colares, tudo é rayá. Também é rayá o trabalho dos professores, agentes de saúde, e o seu. Tudo é rayá, exceto caça e pesca. Assim explicava-me Nixiwaká.

Um grupo, dos homens mais fortes e mais acostumados aos trabalhos pesados, empenhou-se em localizar, derrubar e trazer as toras de Utxá (paxiúbinha) e Tau (paxiubão) até o Caxinauá. Um grupo maior envolveu-se em uma atividade que embora aparentemente mais leve, exigia ainda mais trabalho: retirar as palhas de jarina para a cobertura das casas. Entramos na sombra refrescante da floresta em busca das jarinas. Com meia hora de caminhada chegamos a um verdadeiro ‘jarinal’. Por uma extensão de uns cem metros quadrados, as jarinas eram a planta que dominava o local, embora houvesse outras espécies de árvores, elas eram incontestavelmente a presença mais importante.

Epe – é como os yawanawá denominam a jarina. A palheira tem grande importância em toda região desde muito antes da chegada do homem branco. Sua palha pode ser usada para a cobertura de casas. 

Os yawanawá e outros povos também usam a fumaça de sua palha queimada, para curar determinados tipos de coceiras

Para este rayá, os yawanáwa não levavam água. A própria jarina que fornece as palhas, dá também um pequeno coco, cujo conteúdo é uma saborosa água adocicada. Os cocos um pouco mais maduros apresentam em seu interior uma geleia saborosa. Quando completamente maduros, o interior do coco torna-se rígido e é comparado ao marfim, podendo ser utilizado para artesanato.

Passamos parte da manhã cortando as palhas de jarina e as arrumando no local, para à tarde, transportá-las. Uma envira atava as palhas em feixe e cada qual levava de cem a duzentas unidades. 

Não me pareceu nada fácil carregar aquela ruma de palhas nas costas pela floresta. Fizemos mais cerca de três a quatro viagens cada um, o que deve tornar próximo de quatro mil palhas transportadas naquele dia. Ao final da tarde fomos ‘virar’ as palhas, que consiste em quebrar cada rama de um lado da palha e invertê-la para o outro lado, tornando-se assim, uma ‘telha’ para a cobertura.

Era muito trabalho de fato, mas a maneira como era desenvolvida, não o tornava estafante. Tudo era executado como uma grande brincadeira, com cada pessoa disputando com a outra quem levava mais, quem era mais rápido, quem fazia melhor. Uma disputa saudável e alegre que tornava o trabalho mais leve.

Não havia nem de longe o menor resquício da proverbial “preguiça” naquelas atividades, tampouco havia a pressa em apresentar resultados ou a pressão de um ‘patrão’, ‘gerente’ ou ‘capataz’, mas tudo transcorria dentro de uma ordem e harmonia.

Pensei que talvez nossa sociedade devesse a aprender com os índios, como trabalhar, sem tornar nossa vida, uma escravidão.

No dia seguinte começaram a chegar toras de paxiubinha e de paxiubão que haviam sido transportadas pelo rio. Com grandes machados, os yawanawá mais fortes, rachavam as toras no meio e com um enxadeco retiravam de dentro a polpa esponjosa, cujo odor, semelhante ao de melancia, logo atraia centenas de besouros e fazia os bois a atravessarem o rio para comê-la.

Depois de ‘esvaziadas’, as toras eram então quebradas e achatadas com marretas, transformando-se em rústicas táboas. O paxiubão, mais pesado e resistente destina-se ao chão, enquanto a paxiubinha, mais leve, era destinada às paredes.

Mais um dia de rayá teve início quando Zé Domigo, um dos filhos mais velhos de Yawá, começou a montar a casa. Sua técnica não era muito diferente dos carpinteiros brancos, embora utilizasse menos pregos e mais cipós e enviras nas amarrações.

Os barrotes de madeira nobre foram assentados formando o alicerce da pequena casa.
Sobre eles foram encaixadas e pregadas peças que dariam sustentação ao assoalho de paxiubão. Feito isso, sobem as linhas que começam a dar estrutura à casa. Acrescidas as paredes de paxiubinha, por último é feita a cobertura, trabalho que exigiu a participação de todos, entregando as palhas de jarina para seis trabalhadores que iam colocando e amarrando as palhas até elas formarem o telhado da casa.

Toda esta etapa de trabalho consumira dez dias.

Durante o dia, os trabalhadores extraiam da mata o material, o ‘beneficiavam’, construíam a casa. À noite e pela madrugada estes mesmos trabalhadores convertiam-se em caçadores e pescadores para garantir a sua alimentação e a de seus familiares.

Assim foi a vida destes “preguiçosos” durante os dias em que vivi entre eles.

*Dedico este texto ao trabalhador yawanawá Zé Domingo.

** Este excerto faz parte do livro:

Muká, a Raiz dos Sonhos. Autor: Leandro Altheman Lopes.

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