quarta-feira, 19 de abril de 2017

Lembrete para esse dia 19 de Abril e para todos os outros: descolonizar-me

descolonização
substantivo feminino
  1. 1.
    ato, processo ou efeito de descolonizar, retirando a característica de colônia a.
  2. 2.
    aquisição gradual de independência política, econômica e cultural por parte de antigas colônias.

Detalhe do mural de Cuzco que retrata a colonização da América Andina.Pintor: Juan Bravo
E se de repente, nesse dia 19 de abril, ao invés de fazer as costumeiras homenagens ao indígenas que tanto admiro em meu país e continente, eu resolvesse olhar para mim mesmo, de modo crítico, franco e sincero?

Pois para mim está bastante claro que há muito mais em mim de Aguirre e Anhanguera do que de Atahualpa e de Sepé.

Aproveito a calmaria dessa crise econômica que paralisa a todos, e quanto mais a nós, nessa ponta de mundo que é o Acre para navegar nas páginas de livros que tratam, sob diferentes aspectos, da colonização-ocupação da Amazônia.

Um deles trata-se de ‘Árvore de Rios’ de John Hemming. Folheando seus meandros, vou me reconhecendo. Não nos indígenas ora hospitaleiros, ora arredios, ora valentes e determinados, ora desesperados suicidas, ora dizimados.
Coube aos índios cuja pecha de preguiçosos perdura até hoje, praticamente todo o trabalho braçal empregado no empreendimento colonial.  

Reconheço-me sobretudo na façanha aventureira dos primeiros exploradores, no cristianismo utópico dos jesuítas, na ganância cobiçosa dos colonos.

É que mesmo hoje, século XXI, os paradigmas que conduziram o projeto colonial nas Américas, permanece vivo e atuante. E quando digo tal coisa, não estou excluindo nem a mim mesmo e nem a todos aqueles que com boa vontade muitas vezes abraçam, de variados modos, a causa indígena.

Para quantos de nós esse índio não foi idealizado na figura de um ser-espiritual superior? De outro modo quem irá nos salvar de nosso desencanto? 

Confesso. Eu também. E quando o índio não se encaixa em nossas expectativas de branco sobre o que é ser índio, é porque não é ‘índio o bastante’, ou ‘não é mais índio’, ou ainda ‘não é índio de verdade’. Talvez esse seja afinal o golpe de misericórdia: povos que foram escravizados, evangelizados, ‘aculturados’ ao bel prazer do projeto colonial vigente, ainda podem ter sua identidade definida pelo olhar do outro.

Biraci Jr: Apenas um susto e histórias para contar
Um caso dessa semana chamou a atenção. Biraci Jr, filho do cacique Biraci Brasil do povo yawanawá, juntamente com outros dois companheiros, durante uma caçada, perderam-se por três dias na mata. Não faltou gente a comentar o fato, aparentemente inusitado de que um índio pudesse se perder na mata. Para o senso comum do acreano, índio e mata seriam praticamente uma coisa só. Até aí tudo bem, o problema começa a transparecer quando um apresentador de TV, do alto de sua mais alta ignorância sobre o tema, promove seu preconceito e desinformação ao grau de verdade televisionada. Já apresentei TV e sei que isso acontece, muitas vezes sem maiores intenções de prejudicar, por pura vontade fazer ‘show’. Só que não dá para deixar passar batido. E cumpre o papel de dizer que sim, índio se perde na mata. São fartas as narrativas sobre isso. A novidade, nesse caso específico, é que a velocidade dos meios de comunicação transformou em notícia algo que, em outras circunstâncias, ficaria restrito à aldeia para ser contado ao pé da fogueira, quem sabe em uma rodada de rapé.

Do mesmo modo, posso contar de minhas inúmeras decepções ao idealizar o índio como ‘ser espiritual’, e depois vê-lo, por exemplo, xingando a mãe do adversário em uma partida de futebol, ou tomando umas no bebôdromo da cidade, jogando baralho, comendo linguiça ou apostando dinheiro na roleta do Cassino.

É quando meu alter ego jesuíta diz: ‘Malditos índios que não são o que eu idealizei! Desse jeito vou ser obrigado a olhar para mim mesmo’.

Sete anos atrás, no terreiro sagrado do povo yawanawá, o Muká me deu um Sonho.

Nele, um ser meio homem-meio máquina super-poderoso armado até os dentes com as mais avançadas tecnologias dominava o espaço sideral com uma potente nave.

O ser, que entre outras coisas, tinha domínio sobre a vida e a morte de seus súditos e sobre a estreita passagem entre o céu a terra, terminava por desmontar-se numa infinidade de minúsculas peças, revelando ao fim, seu caráter binário de zero ou um.

Compreendi o recado e desde então tenho aceitado, voluntariosamente a tarefa de ‘desmonte’ de meus padrões de comportamento e de pensamento, que trazem sobretudo, o DNA dos colonizadores desta terra.

Monumento às Bandeiras, no Parque do Ibirapuera
Lembro-me agora da ironia de um velho amigo paulista, ao passar no 'Monumento às Bandeiras': -“E lá vão os bandeirantes, estes bravos desbravadores”,  “-Opa, mas se eles são bravos desbravadores, porque não desbravam a si mesmos”.


A frase tem ecoado em meu, como um desafio para aventurar-me pelas minhas próprias entranhas, e descobrir em cada curva, um pouco daquele tirano tão bem traduzido no sonho do Muká.  

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