E se de repente, nesse dia 19 de abril, ao invés de fazer as
costumeiras homenagens ao indígenas que tanto admiro em meu país e continente,
eu resolvesse olhar para mim mesmo, de modo crítico, franco e sincero?
Pois para mim está bastante claro que há muito mais em mim de
Aguirre e Anhanguera do que de Atahualpa e de Sepé.
Aproveito a calmaria dessa crise econômica que paralisa a
todos, e quanto mais a nós, nessa ponta de mundo que é o Acre para navegar nas páginas
de livros que tratam, sob diferentes aspectos, da colonização-ocupação da Amazônia.
Um deles trata-se de ‘Árvore de Rios’ de John Hemming.
Folheando seus meandros, vou me reconhecendo. Não nos indígenas ora hospitaleiros,
ora arredios, ora valentes e determinados, ora desesperados suicidas, ora dizimados.
Coube aos índios cuja pecha de preguiçosos perdura até hoje, praticamente todo o trabalho braçal empregado no empreendimento colonial. |
Reconheço-me sobretudo na façanha aventureira dos primeiros
exploradores, no cristianismo utópico dos jesuítas, na ganância cobiçosa dos
colonos.
É que mesmo hoje, século XXI, os paradigmas que conduziram o
projeto colonial nas Américas, permanece vivo e atuante. E quando digo tal
coisa, não estou excluindo nem a mim mesmo e nem a todos aqueles que com boa
vontade muitas vezes abraçam, de variados modos, a causa indígena.
Para quantos de nós esse índio não foi idealizado na figura de
um ser-espiritual superior? De outro modo quem irá nos salvar de nosso desencanto?
Confesso. Eu
também. E quando o índio não se encaixa em nossas expectativas de branco sobre
o que é ser índio, é porque não é ‘índio o bastante’, ou ‘não é mais índio’, ou
ainda ‘não é índio de verdade’. Talvez esse seja afinal o golpe de misericórdia: povos que foram escravizados, evangelizados, ‘aculturados’ ao bel prazer do
projeto colonial vigente, ainda podem ter sua identidade definida pelo olhar do
outro.
Biraci Jr: Apenas um susto e histórias para contar |
Um caso dessa semana chamou a atenção. Biraci Jr, filho do
cacique Biraci Brasil do povo yawanawá, juntamente com outros dois companheiros,
durante uma caçada, perderam-se por três dias na mata. Não faltou gente a comentar
o fato, aparentemente inusitado de que um índio pudesse se perder na mata. Para
o senso comum do acreano, índio e mata seriam praticamente uma coisa só. Até aí
tudo bem, o problema começa a transparecer quando um apresentador de TV, do
alto de sua mais alta ignorância sobre o tema, promove seu preconceito e
desinformação ao grau de verdade televisionada. Já apresentei TV e sei que isso
acontece, muitas vezes sem maiores intenções de prejudicar, por pura vontade
fazer ‘show’. Só que não dá para deixar passar batido. E cumpre o papel de
dizer que sim, índio se perde na mata. São fartas as narrativas sobre isso. A novidade,
nesse caso específico, é que a velocidade dos meios de comunicação transformou
em notícia algo que, em outras circunstâncias, ficaria restrito à aldeia para
ser contado ao pé da fogueira, quem sabe em uma rodada de rapé.
Do mesmo modo, posso contar de minhas inúmeras decepções ao
idealizar o índio como ‘ser espiritual’, e depois vê-lo, por exemplo, xingando
a mãe do adversário em uma partida de futebol, ou tomando umas no bebôdromo da
cidade, jogando baralho, comendo linguiça ou apostando dinheiro na roleta do Cassino.
É quando meu alter ego jesuíta diz: ‘Malditos índios que não
são o que eu idealizei! Desse jeito vou ser obrigado a olhar para mim mesmo’.
Sete anos atrás, no terreiro sagrado do povo yawanawá, o
Muká me deu um Sonho.
Nele, um ser meio homem-meio máquina super-poderoso armado
até os dentes com as mais avançadas tecnologias dominava o espaço sideral com
uma potente nave.
O ser, que entre outras coisas, tinha domínio sobre a vida e
a morte de seus súditos e sobre a estreita passagem entre o céu a terra,
terminava por desmontar-se numa infinidade de minúsculas peças, revelando ao fim,
seu caráter binário de zero ou um.
Compreendi o recado e desde então tenho aceitado,
voluntariosamente a tarefa de ‘desmonte’ de meus padrões de comportamento e de
pensamento, que trazem sobretudo, o DNA dos colonizadores desta terra.
Monumento às Bandeiras, no Parque do Ibirapuera |
Lembro-me agora da ironia de um velho amigo paulista, ao passar
no 'Monumento às Bandeiras': -“E lá vão os bandeirantes, estes bravos
desbravadores”, “-Opa, mas se eles são
bravos desbravadores, porque não desbravam a si mesmos”.
A frase tem ecoado em meu, como um desafio para aventurar-me
pelas minhas próprias entranhas, e descobrir em cada curva, um pouco daquele
tirano tão bem traduzido no sonho do Muká.
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