Na mesa, a ayahuasca está literalmente presente,
na forma de dois filtros. O vidro translúcido permite ver o seu interior. Na
ponta esquerda da mesa está o líquido cor de terra, o Nixi Pãe trazido pela comitiva Huni Kuin. Na ponta direita está um
de tom mais escuro: é o Hêu servido
pelos anfitriões do encontro, o povo puyanawa.
Biraci Brasil - Nixiwaká: respeito ás religiões ayahuasqueiras, mas necessidade de que as vozes indígenas sejam ouvidas |
“Essa reflexão é para saber o que queremos deixar de herança
e futuro para um povo”, resume José Luís Puwe, uma das lideranças espirituais do
povo Puyanawa.
Puwe serve o hêu para Biraci Jr Iskukuá durante a mesa que debateu os intercâmbios entre indígenas e não-indígenas através da ayahuasca |
O encontro trouxe lideranças políticas e espirituais dos
povos do Acre. Huni Kuin, Ashaninka, Yawanawá, Nuke Koi (katukina), Shawadawa,
Kuntanawa, Manchineri, Jaminawa e Shanenawa, além dos anfitriões Puyanawa, que por dois dias debateram sobre o uso da ayahuasca.
Camarampi para os ashaninka, nixi pãe para os huni kuin e
uni para os Yawanawá - e mais uma dezena de nomes tão diversos quanto os povos
que habitam a floresta amazônica – são usados para designar a mesma bebida,
universalmente conhecida pelo seu nome Kíchwa: a ayahuasca. É ainda o Daime e o
Vegetal ou Hoasca para as religiões ayahuasqueiras brasileiras.
A ideia de promover um encontro indígena da ayahuasca ganhou
força ao final da Segunda Conferência Mundial da Ayahuasca – a Aya, realizada
em Rio Branco-AC em 2016. A primeira edição da Aya aconteceu em Ibiza, na
Espanha, em 2014.
Longe da sua origem amazônica, do outro lado do Oceano
Atlântico e separada por milênios de conhecimento dos povos originários, não
foi difícil que o debate sobre a ayahuasca conduzido por pesquisadores, na antiga metrópole da
América, soasse como mais uma etapa do secular colonialismo.
Talvez por essa razão seus organizadores tenham decidido trazê-la,
em 2016 para Rio Branco-AC: berço das chamadas religiões ayahuasqueiras - um
fenômeno típico da Amazônia brasileira que urbanizou o uso da bebida nas
grandes cidades e facilitou a sua entrada nos EUA e Europa.
Mesmo no seio da floresta, a participação indígena na Aya
Conference foi exígua. “Nos deram cinco minutos para falar sobre a importância
da ayahuasca para nosso povo”, disse - já na conferência indígena da ayahuasca
- Biraci Jr Iskukuá – jovem aprendiz
das tradições espirituais do povo Yawanawá. A insatisfação dos indígenas com
relação à sua pequena participação e decisão nos caminhos tomados pela
internacionalização da bebida ancestral, foi materializada na forma de uma
carta*, amplamente divulgada pelos meios de comunicação.
Os debates, até então conduzido por pesquisadores e
cientistas, foi preenchido pelas vozes de pajés e aprendizes de diferentes
povos e gerações. A ayahuasca na mesa é sobretudo um recado: para falar da ayahuasca
é preciso comungá-la: uma clara recusa ao paradigma do saber científico
ocidental, e uma reafirmação dos valores dos saberes tradicionais dos povos
originários. A ayahuasca aqui não é objeto de estudo e sim, sujeito de saberes;
uma professora.
Intercâmbio Cultural
A mesa formada pelo cacique, e pajé, Biraci Brasil –
Nixiwaká, seu filho, o jovem aprendiz Iskukuá e Benky Pianko tratou do tema da interculturalidade da ayahuasca, ou
seja, seu uso conduzido por indígenas no meio não-indígena. Biraci fez questão
de deixar claro seu respeito e admiração pelas chamadas religiões
ayahuasqueiras e de como muitas igrejas daimistas têm possibilitado a abertura
para que seu povo apresente sua cultura em um contexto sagrado.
“Essa discussão que todos nós indígenas que nascemos com o
conhecimento dessa bebida tem saído um pouco fora do nosso controle e nós não
estávamos conseguindo discutir isso, e ao mesmo tempo está abrindo as portas
para o mundo, porque através dessa bebida muitos povos indígenas do Acre, da Amazônia
começamos a ser convidados a participar e compartilhar com outras pessoas até
mesmo fora do Brasil. O uni chegou a praticamente todos lugares do mundo. Mas estava
começando a sair do uso original, da qual nós mantemos há milhares de anos.
Essa conferência nos possibilita a nos reencontrar e discutir coletivamente e a
tirar um direcionamento para que a gente possa compartilhar ela, ao mesmo
tempo, mantendo a sua essência. É um começo de muitas discussões que vão
acontecer. Fiquei muito satisfeito. Desperta para discutir como contribuir da
melhor forma que essa medicina se expanda com o respeito que nós povos
indígenas preservamos a milhares de anos. E também estreitar nossa relação com
as igrejas, as doutrinas que usam essa medicina de uma maneira parceira, de
respeito e de entendimento mútuo entre nós. Essa conferência da ayahuasca nos
desperta a ter mais cuidado e chegar a um entendimento que a gente possa se
sentir seguro e que continue sendo preservado e valorizado como nós ancestrais
valorizaram e cuidaram durante milhares de anos. Entendo que hoje estamos em
outros tempos, mas que ela não saia de sua essência.”
Ciência sem consciência
Benky Pianko: por uma ciência com consciência |
O ashaninka Benky Pianko centrou sua fala na importância da
ayahuasca em um conjunto de saberes que possibilitam a vida em harmonia com a
natureza, e de como, segundo ele, ‘a ciência sem consciência’ tem resultado,
entre outras coisas em uma relação destrutiva do homem com a natureza,
traduzida em termos da crise ambiental e climática vivida no planeta.
“Queira ou não, 100% da resistência da nossa vida, é a terra,
é a floresta, as águas que nos sustentam. Todos esse desequilíbrio criado pelos
povos do mundo, e a civilização do ocidente a gente não tem para onde correr.
Nossa única expectativa é poder mostrar quem nós somos através de uma união de
humanidade. A floresta é um filtro. As águas são abençoadas, são divinas, são
espíritos para nossa resistência. A gente não defende a floresta por defender. A
gente defende a nossa vida. Estamos defendendo a nossa vida. Então hoje esse
desequilíbrio climático é consequência dessa ciência que possibilita destruir
para se consumir. O ensino acadêmico tem uma importância grande, mas se você
tem uma ciência e não tem uma consciência de como você vai usar essa ciência
para um bem para que sustente aquilo que você tem no espirito, não adianta
estudar o mundo para matar o seu próprio mundo. Hoje a gente vê que o mundo está
sendo morto por essa ciência sem consciência. Estamos nos reunindo para colocar
nossa posição, a nossa presença, a nossa resistência com sabedoria, inteligência,
amor, paz porque é através dela que vamos provando que nós temos um mundo
diferente mas que todos também são beneficiados nessa terra, não é só nós indígenas.
Por isso estamos falando nessa conferência desse
conhecimento que é tão amplo que hoje através dessas plantas que em muitos
lugares, muitas igrejas estão curando as pessoas, tirando as pessoas de seus
sofrimentos para se reerguer se reativar novamente.
A ayahuasca é um canal, é um despertador mental, é um
trabalho psicológico e o físico para que a gente se reconecte novamente com
nosso mundo.
Esse conhecimento que a gente tem que não trabalha só beber
a ayahuasca. A gente trabalha o espirito de como se penetrar para acionar as
linhas que existem dentro da sabedoria de identificar cada planta, de para que
serve cada planta.
Por isso é um instrumento muito difícil de se provar. Não é
um mundo que é provado, que é escrito no papel. Mas é uma ciência que tem que
ser reconhecida porque o dia em que a terra se descontrolar ainda tem povo que ainda
mantém sua raiz, que ainda tem sua essência, que ainda vive nessa floresta que
defende esses conhecimentos para curar a humanidade renascer e reativar
novamente o mundo.”
Livre Circulação de
Pajés, aprendizes e suas medicinas
A defensora Cláudia Aguirre: povos indígenas devem se apropriar de instrumentos legais ao seu favor como afim de garantir a livre circulação |
A defensora fez uma explanação sobre os diversos meandros na
legislação que passam pela lista de substância proibidas nas Convenções da ONU
sobre Entorpecentes (1961) e sobre Substâncias Psicotrópicas (1971), das quais
o Brasil é signatário. A lista da ONU prevê a proibição do DMT – Dimetiltriptamina,
substância contida em uma das plantas da ayahuasca (a chacrona ou rainha - psychotria
viridis). Contudo, a própria ONU, quando questionada sobre a ayahuasca,
respondeu que plantas contendo DMT não estão proibidas. Ainda assim, a
legislação tem sido interpretada de maneira diferentes pelos países, com
distintos rigores e penalizações para o transporte.
“Essas convenções foram feitas sem serem ouvidas as
comunidades indígenas, essa dimensão não foi tratada com a devida participação
dessas comunidades. Isso é contradição em relação a convenção 169 da OIT que é
o marco normativo internacional que trata do direito dos povos indígenas. A
primeira estratégia básica acredito que seja os indígenas se empoderarem da
leitura e da prática da Convenção 169. Penso as medicinas fazem parte de um
modo de ser e aí a gente tem que trazer a constituição federal de 88 que foi
pioneira em reconhecer os direitos dos povos indígenas e de suas culturas. As
medicinas como parte de um modo de ser que compõe o nossos país e neste sentido,
a priori não haveria o problema do transporte e circulação desde que
contextualizado no modo de ser de um povo, seja dentro da aldeia ou fora da aldeia. Comento isso no perigo de uma certa ‘guetização’
– aquele discurso de que dentro da
aldeia pode tudo, e fora não. Quer dizer o que esse discurso? A aldeia é um
gueto? É nisso que querem transformar os povos? O intercâmbio intercultural,
interpovos e interraças existe desde que o mundo é mundo. Então porque
criminalizar? Temos que fazer o contraste. Há por um lado o panorama das drogas
como um problema e de que seu uso descontextualizado é de fato uma patologia
mas esse panorama difere absolutamente do contexto indígena que as medicinas
estão no contexto espiritual do sagrado, que estão no modo de ser e viver de povos. A
consequência é que isso traz uma grande responsabilidade às comunidades, para
que exerçam o controle social do uso para que não se banalize, dentro de um
princípio de pluralismo jurídico, os usos adequados aos seus contextos, têm de
ser respeitado pelos governos e estados.”
Além das estratégias imediatas de assegurar a livre
circulação, o debate incita também a uma luta mais ampla, que possa
ressignificar as medicinas no contexto das normais internacionais.
“Dei o exemplo do (presidente da Bolívia) Evo Morales
mascando folha de coca na assembleia da ONU sendo que a coca é uma planta
proscrita essas convenções, o que é um absurdo pois viola o direito de
comunidades e povos inteiros da América Latina que fazem uso da coca. Essa discussão
também tem que ser feita, ainda que seja um panorama mais lento, também deve
estar em vista das comunidades.
No Brasil, o transporte da ayahuasca é definido pela
resolução 01/2010 do CONAD (Conselho nacional anti-Drogas) que vincula a
liberação do transporte a partir de documentações que assegurem o uso religioso
da bebida. A resolução do CONAD foi escrita a partir de um Grupo
Multidisciplinar de Trabalho que ouviu, entre os anos de 2006 a 2010, representantes
das principais religiões ayahuasqueiras, mas sem consultar as comunidades
indígenas.
Para o pesquisador Juarez Duarte Bonfim: resolução do CONAD não prejudicaria os indígenas |
Para Juarez Bonfim, apesar dessa omissão do GMT, os
indígenas não seriam prejudicados, já que as normas asseguram o uso religioso,
na qual os índios estariam incluídos. Contudo, por não haver entre eles a mesma
organização documental na qual as igrejas vem trabalhando há décadas, estariam
mais sujeitos a constrangimentos e em casos extremos, prisões.
“Entendo que os indígenas estariam contemplados na resolução
do CONAD uma vez que nas cosmologias indígenas não há separação entre ciência,
medicina, religião e filosofia como no nosso mundo. É um todo holístico. Então
o uso para acessar a espiritualidade a coloca no campo religioso”, explica. “A
lei não prevê restrições ao uso tradicional que não é estritamente religioso como
feito por indígenas e ribeirinhos, por exemplo. Se não é proibido, é permitido,
o que existe é intolerância por parte de algumas pessoas imbuídas de autoridade
que agindo de maneira ilegal e irresponsável que não respeitam a decisão do
CONAD e se põe a perseguir a ayahuasca. As comunidades indígenas e
ayahuasqueiras tem de criar seus mecanismos de defesa jurídica e também social
para enfrentar esses que se colocam como inimigos do uso da ayahuasca”.
Cantos Tradicionais,
Novas Canções e a Juventude Indígena Ayahuasqueira
Ninawá, Pai da Mata na mesa com Joaquim Maná e.. |
Isaká: Tradição e renovação um uma dinâmica cultural |
A mesa composta pelo professor e doutor em linguística
Joaquim Maná, Isaka Huni Kuin e Ninawa Pai da Mata tratou sobre o tema das
canções ayahuasqueiras, ou mais propriamente das canções do nixi pãe dentro da cultura Huni Kuin.
Como pesquisador, Joaquim Maná expôs as diferentes formas e melodias dessas canções
que foram categorizadas em cinco grupos, com melodia e rítmica próprias.
Ninawá explicou que existem canções específicas para ‘chamar
a pressão’, para diminuir a intensidade da força do nixi pãe, para cura, para trazer entendimento das diferentes forças
e presenças da natureza, para colorir a miração e para fazer presentes os
perfumes da floresta.
Isaká falou das novas canções que vem sendo recebidas pela
juventude Huni Kuin, normalmente acompanhada por violão. Isaká destacou que apesar
de este ser um contexto novo, diferente do tradicional, tem sido um importante
meio para que a juventude participe do cerimonial da ayahuasca, ocupando um
espaço que antes vinha sendo ocupado pelas músicas e cultura do branco.
Na mesa composta exclusivamente pelos Huni Kuin, ficaram
evidentes diferentes perspectivas de uso da ayahuasca: uma mais tradicional,
reservada aos pajés e seus cantos tradicionais, e outra nova, onde a celebração
da alegria é o elemento de cura.
Ao que parece, as duas formas são praticadas entre os Huni
Kuin com igual vitalidade.
Patrimonialização dos
Usos da Ayahuasca
IPHAN na mesa sobre patrimonialização dos usos e práticas da ayahuasca |
Tema de grande interesse dos indígenas, o processo de patrimonialização
dos usos da ayahuasca foi debatido na mesa composta por Deivisson Gusmão e
Danielli Jatobá, do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico Nacional . O
pedido entregue pelas religiões ayahuasqueiras em 2008 ao então Ministro da
Cultura Gilberto Gil por ocasião de sua vinda a Rio Branco e desde então vem
sendo estudado pelo IPHAN.
O pedido feito pelas igrejas visa sobretudo obter a
salvaguarda do estado brasileiro de tais práticas, e ao menos em tese, não
afetaria o uso indígena tradicional. Contudo, segundo Deivisson – coordenador
geral de identificação e registro do departamento de patrimônio imaterial do
IPHAN, o próprio conselho do IPHAN teria percebido a necessidade de olhar para as
práticas do uso indígena da bebida, já que são os povos originalmente detentores
deste conhecimento.
Daiara Tukano: a lembrança de que os Tukano, no Alto rio Negro, também fazem uso tradicional da ayahuasca. A palavra caapi que designa o cipó na nomenclatura científica é original do povo Tukano |
A princípio, algumas lideranças expuseram suas dúvidas sobre
possíveis riscos com a patrimonialização, muitas vezes confundido com o
registro de patente.
“A realização da conferência foi um pontapé inicial para a
realização desse esclarecimento. É preciso que se diga que trata-se da patrimonialização
não exatamente da ayahuasca. Não é para patrimonializar a bebida e sim rituais,
celebrações, canções e conhecimentos relacionados a esse universo da ayahuasca,
seus usos e práticas e não a ayahuasca em si.
Todo bem cultural registrado faz jus a medidas que são
planos de salvaguarda que tem como finalidade a ampla divulgação desse bem
cultural como patrimônio cultural brasileiro e para garantir a permanência
desse bem cultural ao longo dos anos.”, explica Deivisson.
Um Caminho para a
auto-regulação
Após os extensos debates, a deliberação da conferência foi a
confecção de uma carta, endereçada inicialmente às comunidades, conclamando cada
povo a realizar antes, um debate interno para amadurecer suas posições para um
segundo momento de discussões. Somente a partir daí é que os coletivos deverão
apresentar suas posições.
Em linhas gerais, a proposta aponta para a criação de instrumentos
de auto-regulação dos usos e práticas da ayahuasca dentro e principalmente fora
das aldeias, com vista a garantir o respeito à bebida, aos saberes envolvidos e aos povos indígenas detentores destes conhecimentos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário