domingo, 17 de dezembro de 2017

Cultura, política, ciência e espiritualidade são tema de debate na Primeira Conferência Indígena da Ayahuasca

Na mesa, a ayahuasca está literalmente presente, na forma de dois filtros. O vidro translúcido permite ver o seu interior. Na ponta esquerda da mesa está o líquido cor de terra, o Nixi Pãe trazido pela comitiva Huni Kuin. Na ponta direita está um de tom mais escuro: é o Hêu servido pelos anfitriões do encontro, o povo puyanawa.

Biraci Brasil - Nixiwaká: respeito ás religiões ayahuasqueiras, mas necessidade de que as vozes indígenas sejam ouvidas 

“Essa reflexão é para saber o que queremos deixar de herança e futuro para um povo”, resume José Luís Puwe, uma das lideranças espirituais do povo Puyanawa.   
Puwe serve o hêu para Biraci Jr Iskukuá durante a mesa que debateu os intercâmbios entre indígenas e não-indígenas através da ayahuasca

O encontro trouxe lideranças políticas e espirituais dos povos do Acre. Huni Kuin, Ashaninka, Yawanawá, Nuke Koi (katukina), Shawadawa, Kuntanawa, Manchineri, Jaminawa e Shanenawa, além dos anfitriões Puyanawa, que por dois dias debateram sobre o uso da ayahuasca.
Camarampi para os ashaninka, nixi pãe para os huni kuin e uni para os Yawanawá - e mais uma dezena de nomes tão diversos quanto os povos que habitam a floresta amazônica – são usados para designar a mesma bebida, universalmente conhecida pelo seu nome Kíchwa: a ayahuasca. É ainda o Daime e o Vegetal ou Hoasca para as religiões ayahuasqueiras brasileiras.

A ideia de promover um encontro indígena da ayahuasca ganhou força ao final da Segunda Conferência Mundial da Ayahuasca – a Aya, realizada em Rio Branco-AC em 2016. A primeira edição da Aya aconteceu em Ibiza, na Espanha, em 2014.

Longe da sua origem amazônica, do outro lado do Oceano Atlântico e separada por milênios de conhecimento dos povos originários, não foi difícil que o debate sobre a ayahuasca conduzido por pesquisadores, na antiga metrópole da América, soasse como mais uma etapa do secular colonialismo.

Talvez por essa razão seus organizadores tenham decidido trazê-la, em 2016 para Rio Branco-AC: berço das chamadas religiões ayahuasqueiras - um fenômeno típico da Amazônia brasileira que urbanizou o uso da bebida nas grandes cidades e facilitou a sua entrada nos EUA e Europa.
Mesmo no seio da floresta, a participação indígena na Aya Conference foi exígua. “Nos deram cinco minutos para falar sobre a importância da ayahuasca para nosso povo”, disse - já na conferência indígena da ayahuasca - Biraci Jr Iskukuá – jovem aprendiz das tradições espirituais do povo Yawanawá. A insatisfação dos indígenas com relação à sua pequena participação e decisão nos caminhos tomados pela internacionalização da bebida ancestral, foi materializada na forma de uma carta*, amplamente divulgada pelos meios de comunicação.  
Os debates, até então conduzido por pesquisadores e cientistas, foi preenchido pelas vozes de pajés e aprendizes de diferentes povos e gerações. A ayahuasca na mesa é sobretudo um recado: para falar da ayahuasca é preciso comungá-la: uma clara recusa ao paradigma do saber científico ocidental, e uma reafirmação dos valores dos saberes tradicionais dos povos originários. A ayahuasca aqui não é objeto de estudo e sim, sujeito de saberes; uma professora.        

Intercâmbio Cultural

A mesa formada pelo cacique, e pajé, Biraci Brasil – Nixiwaká, seu filho, o jovem aprendiz Iskukuá e Benky Pianko tratou do tema da interculturalidade da ayahuasca, ou seja, seu uso conduzido por indígenas no meio não-indígena. Biraci fez questão de deixar claro seu respeito e admiração pelas chamadas religiões ayahuasqueiras e de como muitas igrejas daimistas têm possibilitado a abertura para que seu povo apresente sua cultura em um contexto sagrado.
“Essa discussão que todos nós indígenas que nascemos com o conhecimento dessa bebida tem saído um pouco fora do nosso controle e nós não estávamos conseguindo discutir isso, e ao mesmo tempo está abrindo as portas para o mundo, porque através dessa bebida muitos povos indígenas do Acre, da Amazônia começamos a ser convidados a participar e compartilhar com outras pessoas até mesmo fora do Brasil. O uni chegou a praticamente todos lugares do mundo. Mas estava começando a sair do uso original, da qual nós mantemos há milhares de anos. Essa conferência nos possibilita a nos reencontrar e discutir coletivamente e a tirar um direcionamento para que a gente possa compartilhar ela, ao mesmo tempo, mantendo a sua essência. É um começo de muitas discussões que vão acontecer. Fiquei muito satisfeito. Desperta para discutir como contribuir da melhor forma que essa medicina se expanda com o respeito que nós povos indígenas preservamos a milhares de anos. E também estreitar nossa relação com as igrejas, as doutrinas que usam essa medicina de uma maneira parceira, de respeito e de entendimento mútuo entre nós. Essa conferência da ayahuasca nos desperta a ter mais cuidado e chegar a um entendimento que a gente possa se sentir seguro e que continue sendo preservado e valorizado como nós ancestrais valorizaram e cuidaram durante milhares de anos. Entendo que hoje estamos em outros tempos, mas que ela não saia de sua essência.”

Ciência sem consciência

Benky Pianko: por uma ciência com consciência
O ashaninka Benky Pianko centrou sua fala na importância da ayahuasca em um conjunto de saberes que possibilitam a vida em harmonia com a natureza, e de como, segundo ele, ‘a ciência sem consciência’ tem resultado, entre outras coisas em uma relação destrutiva do homem com a natureza, traduzida em termos da crise ambiental e climática vivida no planeta.
“Queira ou não, 100% da resistência da nossa vida, é a terra, é a floresta, as águas que nos sustentam. Todos esse desequilíbrio criado pelos povos do mundo, e a civilização do ocidente a gente não tem para onde correr. Nossa única expectativa é poder mostrar quem nós somos através de uma união de humanidade. A floresta é um filtro. As águas são abençoadas, são divinas, são espíritos para nossa resistência. A gente não defende a floresta por defender. A gente defende a nossa vida. Estamos defendendo a nossa vida. Então hoje esse desequilíbrio climático é consequência dessa ciência que possibilita destruir para se consumir. O ensino acadêmico tem uma importância grande, mas se você tem uma ciência e não tem uma consciência de como você vai usar essa ciência para um bem para que sustente aquilo que você tem no espirito, não adianta estudar o mundo para matar o seu próprio mundo. Hoje a gente vê que o mundo está sendo morto por essa ciência sem consciência. Estamos nos reunindo para colocar nossa posição, a nossa presença, a nossa resistência com sabedoria, inteligência, amor, paz porque é através dela que vamos provando que nós temos um mundo diferente mas que todos também são beneficiados nessa terra, não é só nós indígenas.
Por isso estamos falando nessa conferência desse conhecimento que é tão amplo que hoje através dessas plantas que em muitos lugares, muitas igrejas estão curando as pessoas, tirando as pessoas de seus sofrimentos para se reerguer se reativar novamente.
A ayahuasca é um canal, é um despertador mental, é um trabalho psicológico e o físico para que a gente se reconecte novamente com nosso mundo.
Esse conhecimento que a gente tem que não trabalha só beber a ayahuasca. A gente trabalha o espirito de como se penetrar para acionar as linhas que existem dentro da sabedoria de identificar cada planta, de para que serve cada planta.
Por isso é um instrumento muito difícil de se provar. Não é um mundo que é provado, que é escrito no papel. Mas é uma ciência que tem que ser reconhecida porque o dia em que a terra se descontrolar ainda tem povo que ainda mantém sua raiz, que ainda tem sua essência, que ainda vive nessa floresta que defende esses conhecimentos para curar a humanidade renascer e reativar novamente o mundo.”

Livre Circulação de Pajés, aprendizes e suas medicinas

Um tema de grande interesse durante o encontro foi sobre a livre circulação dos indígenas com suas medicinas. Foram trazidos casos de constrangimentos e ameaças de prisão por narcotráfico pela Polícia Federal de indígenas que tentavam embarcar suas medicinas a partir de aeroportos. Para essa mesa foram convidadas a defensora pública Cláudia Aguirre e o pesquisador Juarez Duarte Bonfim.

A defensora Cláudia Aguirre: povos indígenas devem se apropriar de instrumentos legais ao seu favor como afim de garantir a livre circulação  
A defensora fez uma explanação sobre os diversos meandros na legislação que passam pela lista de substância proibidas nas Convenções da ONU sobre Entorpecentes (1961) e sobre Substâncias Psicotrópicas (1971), das quais o Brasil é signatário. A lista da ONU prevê a proibição do DMT – Dimetiltriptamina, substância contida em uma das plantas da ayahuasca (a chacrona ou rainha - psychotria viridis). Contudo, a própria ONU, quando questionada sobre a ayahuasca, respondeu que plantas contendo DMT não estão proibidas. Ainda assim, a legislação tem sido interpretada de maneira diferentes pelos países, com distintos rigores e penalizações para o transporte.
“Essas convenções foram feitas sem serem ouvidas as comunidades indígenas, essa dimensão não foi tratada com a devida participação dessas comunidades. Isso é contradição em relação a convenção 169 da OIT que é o marco normativo internacional que trata do direito dos povos indígenas. A primeira estratégia básica acredito que seja os indígenas se empoderarem da leitura e da prática da Convenção 169. Penso as medicinas fazem parte de um modo de ser e aí a gente tem que trazer a constituição federal de 88 que foi pioneira em reconhecer os direitos dos povos indígenas e de suas culturas. As medicinas como parte de um modo de ser que compõe o nossos país e neste sentido, a priori não haveria o problema do transporte e circulação desde que contextualizado no modo de ser de um povo, seja dentro da aldeia ou fora da  aldeia. Comento isso no perigo de uma certa ‘guetização’ –  aquele discurso de que dentro da aldeia pode tudo, e fora não. Quer dizer o que esse discurso? A aldeia é um gueto? É nisso que querem transformar os povos? O intercâmbio intercultural, interpovos e interraças existe desde que o mundo é mundo. Então porque criminalizar? Temos que fazer o contraste. Há por um lado o panorama das drogas como um problema e de que seu uso descontextualizado é de fato uma patologia mas esse panorama difere absolutamente do contexto indígena que as medicinas estão no contexto espiritual do sagrado,  que estão no modo de ser e viver de povos. A consequência é que isso traz uma grande responsabilidade às comunidades, para que exerçam o controle social do uso para que não se banalize, dentro de um princípio de pluralismo jurídico, os usos adequados aos seus contextos, têm de ser respeitado pelos governos e estados.”
Além das estratégias imediatas de assegurar a livre circulação, o debate incita também a uma luta mais ampla, que possa ressignificar as medicinas no contexto das normais internacionais.
“Dei o exemplo do (presidente da Bolívia) Evo Morales mascando folha de coca na assembleia da ONU sendo que a coca é uma planta proscrita essas convenções, o que é um absurdo pois viola o direito de comunidades e povos inteiros da América Latina que fazem uso da coca. Essa discussão também tem que ser feita, ainda que seja um panorama mais lento, também deve estar em vista das comunidades.

No Brasil, o transporte da ayahuasca é definido pela resolução 01/2010 do CONAD (Conselho nacional anti-Drogas) que vincula a liberação do transporte a partir de documentações que assegurem o uso religioso da bebida. A resolução do CONAD foi escrita a partir de um Grupo Multidisciplinar de Trabalho que ouviu, entre os anos de 2006 a 2010, representantes das principais religiões ayahuasqueiras, mas sem consultar as comunidades indígenas.
Para o pesquisador Juarez Duarte Bonfim: resolução do CONAD não prejudicaria os indígenas 
Para Juarez Bonfim, apesar dessa omissão do GMT, os indígenas não seriam prejudicados, já que as normas asseguram o uso religioso, na qual os índios estariam incluídos. Contudo, por não haver entre eles a mesma organização documental na qual as igrejas vem trabalhando há décadas, estariam mais sujeitos a constrangimentos e em casos extremos, prisões.
“Entendo que os indígenas estariam contemplados na resolução do CONAD uma vez que nas cosmologias indígenas não há separação entre ciência, medicina, religião e filosofia como no nosso mundo. É um todo holístico. Então o uso para acessar a espiritualidade a coloca no campo religioso”, explica. “A lei não prevê restrições ao uso tradicional que não é estritamente religioso como feito por indígenas e ribeirinhos, por exemplo. Se não é proibido, é permitido, o que existe é intolerância por parte de algumas pessoas imbuídas de autoridade que agindo de maneira ilegal e irresponsável que não respeitam a decisão do CONAD e se põe a perseguir a ayahuasca. As comunidades indígenas e ayahuasqueiras tem de criar seus mecanismos de defesa jurídica e também social para enfrentar esses que se colocam como inimigos do uso da ayahuasca”.

Cantos Tradicionais, Novas Canções e a Juventude Indígena Ayahuasqueira

Ninawá, Pai da Mata na mesa com Joaquim Maná e.. 

Isaká: Tradição e renovação um uma dinâmica cultural
A mesa composta pelo professor e doutor em linguística Joaquim Maná, Isaka Huni Kuin e Ninawa Pai da Mata tratou sobre o tema das canções ayahuasqueiras, ou mais propriamente das canções do nixi pãe dentro da cultura Huni Kuin. Como pesquisador, Joaquim Maná expôs as diferentes formas e melodias dessas canções que foram categorizadas em cinco grupos, com melodia e rítmica próprias.
Ninawá explicou que existem canções específicas para ‘chamar a pressão’, para diminuir a intensidade da força do nixi pãe, para cura, para trazer entendimento das diferentes forças e presenças da natureza, para colorir a miração e para fazer presentes os perfumes da floresta.
Isaká falou das novas canções que vem sendo recebidas pela juventude Huni Kuin, normalmente acompanhada por violão. Isaká destacou que apesar de este ser um contexto novo, diferente do tradicional, tem sido um importante meio para que a juventude participe do cerimonial da ayahuasca, ocupando um espaço que antes vinha sendo ocupado pelas músicas e cultura do branco.
Na mesa composta exclusivamente pelos Huni Kuin, ficaram evidentes diferentes perspectivas de uso da ayahuasca: uma mais tradicional, reservada aos pajés e seus cantos tradicionais, e outra nova, onde a celebração da alegria é o elemento de cura.
Ao que parece, as duas formas são praticadas entre os Huni Kuin com igual vitalidade.

Patrimonialização dos Usos da Ayahuasca

IPHAN na mesa sobre patrimonialização dos usos e práticas da ayahuasca 
Tema de grande interesse dos indígenas, o processo de patrimonialização dos usos da ayahuasca foi debatido na mesa composta por Deivisson Gusmão e Danielli Jatobá, do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico Nacional . O pedido entregue pelas religiões ayahuasqueiras em 2008 ao então Ministro da Cultura Gilberto Gil por ocasião de sua vinda a Rio Branco e desde então vem sendo estudado pelo IPHAN.
O pedido feito pelas igrejas visa sobretudo obter a salvaguarda do estado brasileiro de tais práticas, e ao menos em tese, não afetaria o uso indígena tradicional. Contudo, segundo Deivisson – coordenador geral de identificação e registro do departamento de patrimônio imaterial do IPHAN, o próprio conselho do IPHAN teria percebido a necessidade de olhar para as práticas do uso indígena da bebida, já que são os povos originalmente detentores deste conhecimento.
Daiara Tukano: a lembrança de que os Tukano, no Alto rio Negro, também fazem uso tradicional da ayahuasca. A palavra caapi que designa o cipó na nomenclatura científica é original do povo Tukano

A princípio, algumas lideranças expuseram suas dúvidas sobre possíveis riscos com a patrimonialização, muitas vezes confundido com o registro de patente.
“A realização da conferência foi um pontapé inicial para a realização desse esclarecimento. É preciso que se diga que trata-se da patrimonialização não exatamente da ayahuasca. Não é para patrimonializar a bebida e sim rituais, celebrações, canções e conhecimentos relacionados a esse universo da ayahuasca, seus usos e práticas e não a ayahuasca em si.
Todo bem cultural registrado faz jus a medidas que são planos de salvaguarda que tem como finalidade a ampla divulgação desse bem cultural como patrimônio cultural brasileiro e para garantir a permanência desse bem cultural ao longo dos anos.”, explica Deivisson.

Um Caminho para a auto-regulação

Após os extensos debates, a deliberação da conferência foi a confecção de uma carta, endereçada inicialmente às comunidades, conclamando cada povo a realizar antes, um debate interno para amadurecer suas posições para um segundo momento de discussões. Somente a partir daí é que os coletivos deverão apresentar suas posições.

Em linhas gerais, a proposta aponta para a criação de instrumentos de auto-regulação dos usos e práticas da ayahuasca dentro e principalmente fora das aldeias, com vista a garantir o respeito à bebida, aos saberes envolvidos e aos povos indígenas detentores destes conhecimentos.      

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