sábado, 21 de maio de 2011

O Animal Humano

Quando estudava filosofia na Universidade, sempre questionei esta dicotomia entre Natureza X Cultura. É com base neste pressuposto que se constrói a civilização ocidental. É por conta desta visão que estamos diante de eminência de mudanças climáticas que podem significar a extinção de milhares de espécies, incluindo a nossa.

Em meus estudos xamânicos deparei-me com uma realidade distinta: a de que a vida é repleta de seres. Não apenas os humanos, mas todos os seres: animais, vegetais, minerais, espirituais, etc... O xamanismo consiste em parte em dialogar com estes seres. Uma perspectiva a qual a civilização ocidental judaico-cristã simplesmente ignora.
Na tentativa de me familiarizar melhor com a linguagem acadêmica (estou há mais de dez anos sem sentar a bunda numa cadeira universitária) comecei a ler sobre o Antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, e qual não foi a minha surpresa ao ver que numa linguagem acadêmica, é exatamente o mesmo que ap
rendi do velho Yawarani, nos três meses de isolamento em que fiquei na Floresta.



Segue abaixo trecho de entrevista concedida pelo Antropólogo Viveiros de Castro a
Lucio Uberdan.

“Perspectivismo” foi um rótulo que tomei emprestado ao vocabulário filosófico moderno para qualificar um aspecto muito característico de várias, senão todas, as cosmologias ameríndias. Trata-se da noção de que, em primeiro lugar, o mundo é povoado de muitas espécies de seres (além dos humanos propriamente ditos) dotados de consciência e de cultura e, em segundo lugar, de que cada uma dessas espécies vê a si mesma e às demais espécies de modo bastante singular: cada uma se vê como humana, vendo todas as demais como não-humanas, isto é, como espécies de animais ou de espíritos.
Assim, por exemplo, as onças se vêem como gente, vendo ainda vários elementos de seu universo como se consistissem de objetos culturais: o sangue dos animais que matam é visto pelas onças como cerveja de mandioca etc. Em contrapartida, as onças não nos vêem, a nós humanos (que naturalmente nos vemos como humanos), como humanos, mas sim como animais de presa: porcos selvagens, por exemplo. É por isso que as onças nos atacam e devoram. Quanto aos porcos selvagens (isto é, aqueles seres que vemos como porcos selvagens), estes se também se vêem como humanos, vendo, por exemplo, as frutas silvestres que comem como se fossem plantas cultivadas -mas vêem a nós humanos como se fôssemos espíritos canibais (pois os caçamos e comemos).

Há vários desdobramentos e implicações desse complexo de idéias: por exemplo, que a forma corporal de cada espécie é uma roupa ou invólucro que oculta uma forma interna humanóide; ou, ainda, que os xamãs são os únicos indivíduos capazes de assumir o ponto de vista de mais de uma espécie além da sua própria; ou, ainda, que, dada a humanidade reflexiva de cada espécie, a caça e o consumo de carne animal são empresas metafisicamente problemáticas, jamais livres de conotações canibais. Tudo isso assenta em um pressuposto fundamental, o de que o fundo comum da humanidade e da animalidade não é, como para nós, a animalidade, mas a humanidade.

Os mitos indígenas descrevem uma situação originária onde todos os seres eram humanos, e a perda (relativa) dessa condição humana pelos seres que vieram a se tornar os animais de hoje. Ou seja, se para nós os humanos “foram” apenas animais e se tornaram humanos, para os índios os animais “foram” humanos e se tornaram animais.

Nós pensamos, é claro, que os humanos fomos animais e continuamos a sê-lo, por baixo da “roupa” sublimadora da civilização; os índios, em troca, pensam que os animais, tendo sido humanos como nós, continuam a sê-lo, por baixo de sua roupa animal. Por isso, a interação entre humanos propriamente ditos e as outras espécies animais é, do ponto de vista indígena, uma relação social, ou seja, uma relação entre sujeitos.

Entre as conseqüências filosóficas mais interessantes dessa doutrina perspectivista indígena está uma concepção das relações entre “Natureza” e “Cultura” radicalmente distinta daquela que vigora, em versões historicamente variáveis, na tradição ocidental, desde o par phusis/nomos da Grécia antiga ao par nature/société do Iluminismo."

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