A morte a tiros da Onça Juma, mascote do Batalhão de Selva de Manaus, durante a passagem do Fogo Olímpico é mais um fato que vem se somar à cada vez mais extensa lista de fatos vergonhosos em relação às Olimpíadas no país.
Se já não bastassem as remoções forçadas, as obras superfaturadas e atrasadas, o Baía de Guanabara poluída, a desfaçatez de uma classe política ilegítima e sem representatividade real, agora temos também para a vergonha geral da nação, um animal símbolo abatido minutos depois de posar como 'figurante' da passagem da tocha.
Alguém já disse que 'somos todos onças': figurantes em uma celebração cuja 'presença' do povo brasileiro é meramente ilustrativa de um 'povo cordial e feliz' que somente permanece vivo na memória de marchinhas de carnaval.
Somos o povo cordial e feliz que mais avidamente destrói e mata no mundo. Segundo relatório da Global Witness, o Brasil foi no ano de 2015, o país em que mais se mataram ambientalistas. Cinquenta segundo o relatório. Somos seguidos pelas Filipinas e Colômbia, com 33 e 26 respectivamente.
Isso em certa maneira, equivale a dizer que a Onça Juma, antes de morrer, já estava morta. Este aliás tem sido o principal argumento daqueles que se propõe a minimizar e relativizar o fato. O Exército recebe dezenas de animais capturados pelo IBAMA de traficantes ilegais, ou quando por acaso algum destes animais 'invade' uma propriedade.A Onça Juma morreu sua primeira morte quando teve seu habitat natural destruído para dar espaço a alguma fazenda, ou barragem ou garimpo. Uma segunda morte na mão de traficantes. Uma terceira morte, simbólica, quando, ela, a senhora absoluta da floresta foi acorrentada para tornar-se figurante involuntária da pantomima olímpica. E finalmente o tiro de misericórdia, quando um esturro e um movimento 'suspeito' trouxe a tona sua verdadeira natureza: uma Onça viva em carne, osso, garras, dentes e pintas sempre será mais do que apenas o símbolo de bravura a que se pretende.
Mas, para muito além da comoção pública da morte de um animal que não escolheu estar ali, e para muito além de mais essa vergonha nacional, há outros 'símbolos em movimento' que merecem ser recordados, para que não se tornem apenas gestos ensaiados e repetidos, vazios de significado.
O primeiro deles trata-se da própria Tocha Olímpica. A tocha simbolizava para os antigos gregos que instituíram as Olimpíadas, o Fogo roubado de Zeus por Prometeu.
Contam os mitos que Zeus teria proibido os demais deuses a dar ao homem o fogo, já que com ele, poderíamos nos igualar aos deuses.
A ordem de Zeus foi desafiada por Prometeu que após roubar-lhe o Fogo, presenteou-o a humanidade.
É bastante evidente que, para os gregos antigos, o Fogo é o que diferencia o Homem das demais espécies, colocando-o mais próximo da Divindade.
Esse tema, de algum modo, reaparece nos mitos ameríndios. Com a diferença que os povos nativos da América, é justamente a Onça, a Dona do Fogo.
Os mitos contam a história de como a Onça, (ou como prefiro, Jaguar) era a primeiro dona do fogo, em um tempo mítico em que a o homem comia cru e a onça, cozido.
A partir daí surgem variações de como este fogo chegou até o homem. Em algumas histórias, o fogo é roubado da Onça por meio de astúcia. Em outras versões, a Onça, meio que apiedada da condição humana, voluntariamente dá aos homens o Fogo, como um presente.
O Fogo é o marcador civilizatório, a fronteira entre o Cru e o Cozido. É também a fronteira entre o mundo ‘cultural’ humano e o selvagem mundo ‘natural’. Ou se preferir, dentro de uma perspectiva indígena, o Fogo é o que marca e diferencia a cultura humana, das culturas da outras espécies, já que essa fronteira artificialmente imposta entre natural e cultural parece não constar nas referências indígenas.
Entre estes dois mundos, estas duas perspectivas, está o Fogo.
Ou seja, em outras palavras, isso equivale dizer que o Fogo, aquilo que diferencia o Homem das demais espécies, aquilo que cria a perspectiva humana, é na verdade, um legado da Onça.
Não espero com isso que ‘os outros’ passem a venerar a Onça como ‘animal sagrado’. Afinal, como diz Ailton Krenak, o sagrado está nos olhos de quem vê, e quem vê em uma montanha, rio ou floresta apenas recursos a serem pilhados, jamais terá a oportunidade de ver algo além disso.
Continuarão sem saber que a luz primeira, aquela que acende as tochas com que se caminha nas escuridões, todas elas, já nasceu primeiro, antes da primeira alvorada, no brilho dos olhos do Jaguar.
quinta-feira, 23 de junho de 2016
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