Pela manhã, sou surpreendido pela notícia da morte do Velho
Vicente Yawarani. Quem me dá a notícia é Joaquim Taska. Conta que Yawá
despertou naquela manhã, na aldeia que leva seu nome, e que ainda contou uma
história antes de morrer.
A surpresa de sua morte não supera a tristeza maior de não
ter podido me despedir dele, não ter podia ouvir cantá-lo mais uma vez no
terreiro, e sobretudo, pela distância em que me encontro – fazendo um mestrado
em Curitiba – não poder ir até a aldeia para as últimas homenagens.
Encontrar palavras para descrever Yawá é uma busca vã. Só
quem o ouviu cantar, quem ao menos conheceu seu sorriso e jeito de menino em um
homem centenário, pode ter alguma medida de quem ele foi.
Dos desafios que fazia no terreiro, ao resistir cantando pelas
madrugadas e despertar a todos pela manhã com sua luz, sua alegria jovial.
Resistir talvez seja um bom verbo, para descrever o homem
que atravessou a história do contato, dos seringais, dos missionários que
tentaram desaparecer com sua cultura e sua fé. Do homem que mesmo diante das
agressões, resistiu ao desejo de vingança para cantar, na voz que nunca irá
calar, a alegria da vida, a celebração da natureza, de uma cultura que como
ele, resistem.
Muitas vezes referi-me a ele como um sábio, mas também um
erudito que guardava as formas mais arcaicas e cultas de sua língua, que
conhecia cada tom, cada voz que compõe o conhecimento shuintia, como ele a
próprio se referia: um rezador.
Cheguei a compará-lo a Camões ou Shakespeare de sua própria língua,
ou ainda, a uma biblioteca viva de conhecimentos, adquirido nos longos anos de
vida na floresta, por vezes na solidão da mata. Uma maneira de talvez simplória,
de tentar dimensionar para outros brancos, como eu, a importância de Yawá.
É uma biblioteca que se vai. Mas que também deixa
seguidores, continuadores, o que me faz pensar na responsabilidade que aumenta
enormemente para a geração que fica, o que me faz pensar qual pode ser meu
próprio lugar nisso tudo.
Meu pouco conhecimento da língua me permitiu aprender pouco através
das palavras de Yawá, mas muito, através de seus gestos. Gestos generosos,
espontâneos, despretensiosos, mas que marcaram cada segundo de convivência que
tive com ele. Do ir buscar lenha de madrugada, do montar e desmontar a
engenhoca de moer milho, do eterno consertar da canoa, do rir-se fácil diante
das dificuldades, da leveza, da alegria. Do cantar, do cantar, do cantar.
Mas talvez a imagem mais forte, seja de lembrar dele rezando
no pote. De como aquele pote retumbava como um coração vivo, de como sua
palavra de fogo em brasa enchia o pote com seu poder e conhecimento, capaz de me
colocar diante de mim mesmo de uma maneira nova, ao mesmo tempo antiga, naquela
voz, naquele retumbar que vibrava o nosso pequeno peshei, a casinha de palha e paxiúba que abrigou a mim e a seu
filho Tawaho durante a dieta, no já distante ano de 2010.
De uma daquelas noites de reza, sua voz ecoou por mim dias
seguintes e meu fluxo de pensamento, ritmado por sua voz, saiu assim:
'Podia deslindar os meandros do DNA das estrelas. Olhar por
trás do pensamento, analisar padrões de comportamento, desmontar a função
mecânica do cérebro como faz um relojoeiro. Estudar a física quântica, conhecer
a intimidade da matéria. Esmiuçar as tripas do conhecimento e saber o que ele
comeu no jantar. Poderia fazer tudo isso numa prosa analítica tão extensa e
complicada, e com o encanto das palavras, manter por horas a fio, uma plateia
mesmerizada, sem nunca parar de falar.
Mas eu prefiro ouvir o som que sai do pote, da reza do
Yawá.'
Nenhum comentário:
Postar um comentário