sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Milagres



Leandro Altheman

A viagem de volta pela BR 364 foi bem mais difícil do que a ida. Alem do cansaço natural de um corpo que passou praticamente dois dias em cima de uma motocicleta, uma inesperada chuva dificultou de maneira incalculável o progresso da viagem.
Mesmo esperando dois dias após a chuva, quando sai de Sena Madureira em direção a Manoel Urbano, com a incrível pretensão de dormir em Feijó, percebi o tamanho da dificuldade que teria de enfrentar. Logo após a travessia sobre o rio Caetés, dezenas de automóveis, grandes e pequenos, caminhões e caminhonetes, enfileiravam-se um após o outro em trechos de difícil passagem. Ainda assim, com a motocicleta foi possível ultrapassar estes obstáculos, ate que finalmente me deparei com a inacreditável e intransponível “tabatinga”. Levei a primeira queda e sem desanimar subi novamente na moto. Mas adiante foi ficando cada vez mais funda a “tabatinga”. Em alguns lugares, onde desci da moto para empurrá-la, tinha a impressão de estar pisando em uma enorme esponja com quase meio metro de profundidade. A água chiava saindo dos poros daquele terreno, aderindo-se ao sapato, aos pneus, correntes e ao que mais estivesse ao seu alcance, não como uma lama, mas como um “chiclete”, uma borracha liguenta que ia se acumulando e aumentando a espessura a cada passo. Como se não bastasse, o terreno não oferecia o mínimo de aderência para ao menos empurrar a moto que mesmo pesando apenas 100 kg exigia um esforço hercúleo para transpor míseros centímetros. Em pouco tempo estava totalmente sem fôlego. Tentei pela ultima vez utilizar o motor da moto para sair daquela situação, o que foi fatal: a embreagem não suportou o esforço e queimou o disco. Fiquei parado em cima de uma ladeira, com a tabatinga a frente a atrás de mim, com o motor funcionando, mas sem o mínimo de movimento. Alguns motoqueiros que vinham atrás ajudaram-me a afastar a moto da pista.

Atitude confiante

Neste momento, minha tendência natural seria entrar em desespero, sentir raiva de mim mesmo, me culpar por ter sido tão burro e imprevidente a ponto de entrar na BR naquelas condições. No entanto, percebendo a total inutilidade destes sentimentos, fiquei absolutamente tranqüilo e observar antes, as condições do meu corpo. Percebi que estava com forte palpitação e quase sem fôlego, o sol forte ofuscava minha vista e minha cabeça aquecia-se assustadoramente com o calor. Mal tinha forças para andar. Minha primeira atitude foi buscar uma sombra. Tirei a bagagem das minhas costas e deite-me sob a sombra tênue de uma sororoca. Sentia sede, mas como não tinha água, apenas a sombra e o descanso estavam a minha disposição. Alguns minutos depois de estar sob a sombra comecei a relaxar, senti um leve mas agradável brisa e a sensação de sede diminui consideravelmente. Cerca de 10 minutos depois, já estava tão descansado que conseguia ajudar outros motoqueiros que passavam pelo caminho. Mas apenas alguns segundos sob o sol eram suficientes para fazerem voltar a sede e a palpitação com força total.
Percebendo que não tinha água a minha disposição, resolvi lançar mão da única coisa a disposição: ayahuasca.

Delicadamente coloquei uma pequena dose na garrafinha, fiz a consagração e tomei.
O espírito do momento era esse: não desanimar diante das adversidades, encontrar em tudo, alento, ter fé, esperança, confiança, em si mesmo e nos seres divinos que me acompanham. Orei para os seres divinos que comandam os caminhos e aguardei o resultado, pensando e sentindo que na verdade nada poderia me fazer mal, e que alguma solução viria.

Conforme a força veio chegando, minhas percepções sobre aquele momento preciso, seus múltiplos significados, foram aos poucos se revelando.

Percebi a importância desta atitude de fé, de esperança, de confiança profunda, em si mesmo, na semente divina que trazemos no coração e que com dignidade devemos portá-la.

Estava tudo tão maravilhosamente ótimo, e nem cheguei a me surpreender com isso. Minha moto estava quebrada, a mais de 400 km de casa, um sol abrasador e nenhuma perspectiva de resgate em pouco tempo. Ótimo!

Tinha uma garrafa inteira de ayahuasca, e no meu peito, uma confiança que começou a se abrir em entendimento. Vi um gavião sendo atacado por pequenos pássaros. Uma cena comum e que em outros momentos me causava uma certa angustia pro ver que meu parente sofria com pássaros tão pequenos. Mas desta vez, na sombra da sororoca, sem pressa de tempo, pude ver a cena completa e percebi que na verdade o gavião não se aperreava nem um pouco com as manobras dos passarinhos, ele manobrava também, diminuindo o poder de fogo dos ataques. O que antes, em cenas curtas me parecia uma fuga desesperada, revelou-se na verdade uma manobra evasiva muito inteligente, que colocavam os pássaros pequenos exatamente aonde o gavião os queria.

De repente, passaram por ali dois tratores. A vibração deles perturbou o ar e a terra em volta de mim, tirando-me um pouco do estado em que me encontrava. No entanto, mantendo a confiança, a paz permaneceu preservada em meu peito, e pude então entrar em uma nova cadeia de percepções. A primeira foi de uma sensação de urgência, que aprecia fazer parte não apenas daquelas máquinas, mas de toda uma era. Uma sensação com um apelo muito forte, lançado a todos nós. Mas dentro da consciência xamânica, me veio um profundo alerta:”não atenda a este apelo”. E pude então olhar as coisas mais a fundo. Vi então que este aparente “sentido de urgência” na verdade escondia, encobria uma urgência mais real, verdadeira, mas que contudo não me foi revelada.

Já a “urgência social’, assim me foi revelado, estava enraizada em um sentimento de prepotência, de presunção do ser humano. Um sentimento que lhe afastava daquilo que era mais nobre, mais verdadeiro, mais prazeroso, de uma devoção natural aos Criador através dos elementos da criação. Foi me mostrado, contudo, que mesmo este atual estágio do ser humano, era também de certa forma, parte de seu aprendizado, mas que nem por isso, eu precisaria compartilhar. Ainda me resta a escolha de um caminho sagrado, junto ao Criador, presente, em cada partícula da criação.

Providência Divina

Em meio a esta deleitosa aula que transformou um amargo inferno, em um carinhoso paraíso e palácio do conhecimento, a medida que o sol aquecia, mais e mais automóveis, motocicletas e caminhões passavam por ali, intensificando o fluxo naquele local. Estava risonho e sentei-me sobre um grande pedaço de barro, observando o movimento. Alguns carros que por ali passavam buzinavam e me cumprimentavam, mas mesmo alguns conhecidos que passaram por mim, não chegaram a perguntar se precisava de algo.
Passou por mim então, uma Toyota azul, de carroceria de madeira, e o motorista olhou demoradamente para mim, diminuindo a velocidade. Aproveitei a deixa para lhe pedir água que ele me deu. Bebi longos e demorados goles, esvaziando pela metade a garrafa de dois litros. Ele então me perguntou o que acontecera e em meio aos goles, fui explicando.
“_vamos buscar um senhor que está machucado no ramal. Quando voltarmos, embarcamos a tua moto de volta para Sena Madureira.”
“-Maravilha”. Respondi
Minha alegria foi tanta que resolvi comemorar com mais uma dose de ayahuasca.
Só que desta vez, o cuzcuz com ovos do café da manhã do hotel, pediu para sair, por baixo.
Juntando toda dignidade do meu ser procurei o papel higiênico, já meio que me espremendo. Coloquei um boné e andei uns 50 metros até achar uma sombra (que não fosse perto de onde eu estava) e lá deixei o meu testemunho: Fiz a higiene e sai de lá antes que as moscas começassem a perturbar aquele lindo momento.

Voltei para o meu canto, mais aliviado e fiquei curtindo a vida, alegremente aproveitando aquele momento de leveza. Em menos de 15 minutos a Toyota Azul apareceu de volta, e imediatamente, o motorista, estacionou ao lado da moto. Sentindo a emoção de ser salvo, fui até lá e ajudei-o a embarcar a motocicleta. Logo percebi a boa disposição do sujeito: mesmo coberto de lama, num sol daqueles, levantando aquela moto a uma altura de 1 metro e meio, o sorriso não saia de seu rosto.
Enquanto o ajudava a erguer a motocicleta lembrei de dizer:
“Um resgate destes, só pode ser a providencia divina”.
Para mim que estava alí sem a possibilidade de um resgate este me pareceu um autêntico mliagre. E mesmo diante de todas as incertezas da vida, saí de lá com uma certeza: que o auxílio vem para quem consegue se colocar em uma atitude de confiança e de dignidade perante as dificuldades da vida.

Fidélis, o condutor da Toyota, amarrou a motocicleta. E para não ficar só olhando, uma vez que não fazia a menor idéia de por onde começar disse: “Vou fazer o que sei”, peguei então minha câmera fotográfica e passei a registrar o momento do resgate, já pensando em utilizar depois as fotos para descrever esta incrível cadeia de eventos.

Depois de embarcado, seguimos viagem de volta para Sena, mas não pro muito tempo: no meio do caminho, uma caminhonete Nissan que estava sendo rebocada, foi deixada para traz depois que o reboque partiu e o cara que o levava nem percebeu, e seguiu em frente. Nosso herói de hoje, que já havia tirado um senhor idoso de dentro de um ramal, e resgatado um motociclista que ele nunca tinha visto na vida, desceu da caminhonete , pacientemente atou uma corda por dentro de um “cambão” (espécie de eixo que evita o choque entre o rebocador e o rebocado) e passou a rebocar a “Nissan”. Mais para frente, Fidélis, afastou-se um pouco e desceu para ficar observando os carros pequenos passando por um trecho difícil, indicando os melhores lugares para passagem. Perguntei para outro ocupante da Toyota de quem era o veículo e ele me disse apenas: “da Igreja”. Não quis perguntar “de qual igreja”, pois achei que estaria sendo indelicado. Não importa de qual igreja fosse, seria sempre grato aqueles irmãos.

Depois seguimos nossa viagem, já em maior velocidade, pois eram cerca de 5 horas da tarde e a estrada já estava bem mais seca.Conversei demoradamente com o sujeito que ia comigo na caçamba: um rapaz jovem, mineiro, que vivia naquele ramal desde os seis anos de idade. Há mais de 21 anos sua família havia saído da zona urbana de Belo Horizonte para morar na zona Rural de Sena Madureira-AC. O mais incrível é que tudo começou com o seu irmão, que foi para lá com 14 anos, virou padre e convidou o restante da família. Neste momento já comecei a perceber que se tratava de Igreja Católica.
Enquanto andava na carroceria daquela Toyota fui contando ao rapaz sobre Cruzeiro do Sul, os seus muitos buritizais, os seus banhos, o nosso novenário, falei sobre meu filho que sobe em árvores para comer ingá e percebi que amava imensamente o Juruá. Senti um amor tão profundo e forte, que começou por Cruzeiro do Sul, ampliou-se para a natureza do Juruá, para a minha família, agradeci imensamente minhas escolhas que me levaram até lá, e meu amor foi se ampliando: ao vento que balançava meus cabelos, ao sol que fazia meus braços arderem, à terra tão bela afinal, e que nos concedia seus caminhos, aqueles irmãos que mesmo sem me conhecerem me resgataram. Senti a presença de Deus em tudo, não enxerguei mais barreiras entre religiões, credos, enfim, percebi que há portanto uma fonte universal a qual todos podemos acessar, de diferentes maneiras...

Prometi para mim mesmo ascender uma vela na igreja, para agradecer o espírito fraterno daqueles irmãos.

A ocasião ainda me deu a oportunidade de conhecer o legendário Padre Paolino Baldassari que há tantos anos faz o bem naquela terra, àquelas gentes, de acordo com seus princípios.

Depois de consertar a moto, o que levou cerca de 40 minutos, fui até a igreja Nossa Senhora da Conceição e acendi uma vela em agradecimento...
Um frase na igreja me chamou a atenção: "Ninguém vem a mim a não ser que lhe seja concedido pelo pai". E lá estava eu, mesmo sendo uma ayahuasqueiro, prestando uma homenagem, um agradecimento sincero àquelas pessoas que com base nos seus sentimentos e crenças, fazem o bem, sem olhar a quem.

Saí de lá com a certeza ainda maior de que "Deus está em toda parte".

2 comentários:

  1. Vc é doido, direto e dicidido por isso o admiro. Nessa situação seus leitores aprendem a ter paciencia e si divertem ao mesmo tempo.

    Parabens.

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  2. Parabéns, Leandro!!!
    Li atentamente, e relendo alguns trechos, cada frase dessa apopéia. Em alguns momentos cheguei a sentir a pânico. Você foi justo e conciso.
    Sua simplicidade, seu talento e sua honestidade sao as qualidades que mais admiro em você.
    Seu amor por nossa terra, sua contribuiçao de jornalista e de cidadao devem ser um dia recompensados.
    Valeu!

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