“Fique
dentro de seu corpo”, alerta o xamã para o seu iniciado no filme “Blueberry” (assista trecho da "miração").
A frase não
é nenhuma coincidência e nem está solta ao acaso no meio do filme. Trata-se da
reprodução de um dos ensinamentos mais caros à visão tradicional ayahuasqueira.
Bem, e o que a frase estaria fazendo em um filme western?
Bem, e o que a frase estaria fazendo em um filme western?
Ocorre que o seu diretor, o holandês Jan Kounen esteve entre os Maestros Shipibo-Conibo no Peru, sendo inclusive o autor do documentário “Other Words”, sobre a tradição ayahuasqueira deste povo .
Quando Jan decidiu
aceitar o projeto de adaptar para o cinema o quadrinho “Blueberry”, transformou
temas tradicionais do cinema western como a busca ao tesouro e o duelo entre
mocinho e bandido em algo mais “ espiritual”. O tesouro passa a ser o próprio conhecimento
das plantas de poder (no filme elas são retratadas como sendo peyote, planta de
ocorrência no México e EUA). O duelo, por sua vez é retratado como uma luta
entre a luz e a sombra que ocorre, na verdade, dentro do próprio individuo.
O Corpo
Estive no
ano de 2010 na Aldeia de Pahoyan no Ucaially peruano. A comunidade Shipibo-Conibo
tem cerca de 2 mil habitantes. Participei de cerimônias ayahuasqueiras
tradicionais, onde pude constatar um pouco desta visão tradicionalista da
ayahuasca, que difere bastante das religiões ayahuasqueiras do Brasil.
As
cerimônias foram dirigidas pelo Maestro Dom Miguel e assistidas pelos “abuelitos”
(anciãos que tem o papel de “ver” possíveis problemas, fazem uma espécie de “guarda”
do maestro) e “mamas”(idosas que lidam mais diretamente com os problemas emocionais
e familiares).
A ênfase do
trabalho é no corpo e não o “espírito”.
Dom Miguel
explicava que as chaves para os “mundos” ou “realidades” estava no próprio corpo.
Para tanto, utilizam-se de diferentes medicinas, como por exemplo o Shiric
Sanango, entre outras.
O objetivo
do trabalho é livrar o corpo de suas mazelas, travas e cargas emocionais, ou
simplesmente “doenças”. No conceito de “doença” estão os padrões repetitivos de
respostas que impedem o indivíduo de exercer em plenitude a sua felicidade.
Há sempre o alerta
(implícito ou explícito) de “prestar a atenção ao corpo”. Deste modo,
aprende-se a compreender o corpo não apenas como um “templo” do espírito, mas
como a maior e mais verdadeira escola de que dispomos.
O acesso aos
universos “espirituais” (não ouvi eles usarem esta expressão “espiritual”, são simplesmente
“universos”, ou mais comumente “mundos”) se dá através de um corpo equilibrado
e em sintonia.
Ao invés de
procurar “libertar o espírito da matéria”, como tratam algumas linhas
ayahuasqueiras, o objetivo é presentificar cada vez mais o espírito no corpo.
Tornar o corpo alerta, vivo e presente, capaz de responder a todos os desafios deste e de outros mundos.
Espiritismo na ayahuasca
Nas religiões
ayahuasqueiras brasileiras, a influência muito forte do espiritismo kardecista
colocou as coisas sob uma nova ótica, onde o “espírito” é superior ao corpo. A
matéria deve ser “vencida” pelo espírito. Nesta visão, os desejos e
necessidades do corpo são vistos muita vezes como “adversários” a serem
derrotados pela ordem moral do espírito.
Visão que se
afasta da concepção tradicional ayahuasqueira.
O resultado
pode ser visto em muitas igrejas: corpos debilitados ou com pouco tônus
muscular. Resultado de uma visão de mundo cristã-ocidental que privilegia a ideia
de um paraíso eterno pós-terreno, onde o corpo é de pouca utilidade.
Corpo e Sangue
A visão
tradicional da ayahuasca recoloca o corpo em seu devido lugar sagrado e como tal, sagrados são a terra, o
fogo, a água e o ar que o compõe.
Sobre o pós-vida,
o Músico e Xamã peruano Alonso Del Rio em seu livro “Tawantinsuyu” resume em
poucas palavras o que é a visão ayahuasqueira e xamânica. “Temos uns poucos
anos para dar estabilidade suficiente para nossas almas, para que elas possam
subexistir após a morte do corpo físico”.
Em última
análise, o que permite a chamada “vida pós-morte” nada mais é do que também um
corpo. A consciência precisa de um habitáculo que na verdade, também é um
corpo.
Imagens: Desenhos de mirações do atrtista plástico ucayalino Pablo Amaringo.
Foto: Dom Miguel Ochavano e sua esposa Mama Lilia.
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