*Cláudio Naranjo
HISTÓRIA DA UNIÃO DO VEGETAL POR UM MEMBRO ANÔNIMO DA UDV
Conheço muitos membros da União do Vegetal que, apesar de seu prestígio dentro da instituição, fazem sérias críticas à mesma. Abaixo reproduzo o testemunho de um dos integrantes mais respeitados da UDV, a quem pedi que escrevera suas reflexões sobre o que parece ser uma contra corrente dentro da instituição. Por esta razão, me pediu que respeitasse seu anonimato.
A história da União do Vegetal começou em 1959, quando um homem de origem humilde chamado José Gabriel da Costa, conhecido mais tarde pelo nome espiritual mestre Grabriel, entrou em contato com a ayahuasca num seringal. Ao beber o chá começou gradualmente a recordar sua missão de unir as pessoas em torno do “vegetal” (nome dado à ayahuasca pela UDV), ensinando através de histórias e de sua doutrina as chaves para o desenvolvimento espiritual.
No começo da UDV a presença do mestre Gabriel, um homem muito carismático, brindava seus discípulos com um grande impacto transformador. Desta época se contam histórias incríveis. Ele ajudou a transformar a muitos dos seus primeiros discípulos, alguns rudes e desequilibrados, em pessoas de bem, mais equilibradas e conscientes. Alguns deles receberam os ensinos diretamente do mestre Gabriel, como o mestre do vegetal. Um exemplo é um homem cuja valentia foi colocada em dúvida e quis cortar o dedo e mastigar-lo para provar que era macho. Eram essas as pessoas que enfrentava mestre Gabriel. Quando Gabriel morreu, foram esses homens que levaram seus ensinos a diante.
As palavras de M. Gabriel sempre foram muito claras. De uma sabedoria fora do comum, ele alcançava altos níveis de compreensão através de uma linguagem simples, direta e minimalista. Desta forma conseguiu uma comunicação com todos os níveis de compreensão (assim é a sabedoria cabocla: a palavra e a mensagem devem vir de tal maneira que as possam compreender tanto uma pessoa inculta quanto um homem letrado.)
O mestre tinha o dom de conduzir as pessoas aos mundos transcendentais para experimentar a realidade espiritual. Em seus ensinos podemos encontrar as mesmas verdades que no budismo e o cristianismo esotérico.
Depois de distribuir e ensinar a ayahuasca durante quatro anos dentro da selva amazônica, M. Gabriel se instala em Porto Velho e concretiza a religião que criou. A UDV cresce rapidamente e o mestre e seus seguidores criam uma associação: o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal. Elaboram um estatuto e leis para regular as relações entre os irmãos (já que agora tinham uma irmandade), bem como a distribuição do vegetal.
Já no meio urbano, estabeleceu gradualmente uma estrutura hierárquica, que se mantém até hoje, onde a pessoa pode ascender a certos “lugares” de acordo com certos critérios. A princípio se entra como sócio e depois passa-se ao Corpo Instrutivo, onde se recebe acesso a ensinos próprios deste “grau”. No segundo escalão da hierarquia se converte em conselheiro, ou seja, adquire um grau que representa sua capacidade de abrir-se para perceber as necessidades dos outros e auxilia-los. O terceiro grau, o de Mestre, só pode ser ocupado por homens.
Depois existem outros “lugares” de maior responsabilidade, que também só podem ocupados pelos Mestres. A direção de uma comunidade da UDV cabe aos conselheiros e conselheiras e aos Mestres.
Cada grau alcançado possui ensinos particulares e outorga o direito de escutar certas “histórias”. De acordo com seu grau, os iniciados irão elucidando esta histórias, que são transmitidas oralmente de memória, da mesma maneira que no chamanismo se recebe a iniciação através de mitos e símbolos.
Esse conjunto de contos secretos revela sabedoria. Atende a muitos níveis de compreensão, desde o literal até uma rica simbologia cuja total compreensão nem sequer os Mestres conseguem discernir.
Além disso, falamos de uma cultura que tende a reproduzir certas interpretações sem se aprofundar em seu verdadeiro significado oculto, que somente pode ser compreendido por uma maturidade espiritual.
Existe, hoje em dia, um ensino que somente é dado aos Mestres. As mulheres seguem sem poder escutá-lo. Imagino que isto seja uma forma de afirmar o poder masculino. Podemos dizer, portanto, que se trata de um sistema hierárquico e patriarcal.
O aumento gradual no número de sócios despertou a atenção das autoridades, que tentaram impedir a distribuição do vegetal. Desde então começou uma luta constante pela liberação do chá, que culminou em sua liberação atual. É importante destacar o papel fundamental da UDV na liberação dos direitos legais de uso da ayahuasca em contextos ritualísticos-religiosos no Brasil e nos EUA. Hoje em dia, a UDV tem suas atividades legalizadas e presta importantes serviços nas comunidades onde tem suas unidades administrativas, desde serviços para seus sócios até ações beneficentes nas comunidades carentes, recebendo assim o título de Utilidade Pública Federal.
A expansão da UDV vem se dando de maneira vertiginosa nos últimos anos, chegando hoje a mais de quinze mil sócios, distribuídos em núcleos por todo país. Ainda que a estrutura criada pelo seu fundador tenha sido preservada nos mais mínimos detalhes operacionais, muitas coisas mudaram depois de sua morte. Imagino que todo o processo em prol da legalização do chá, que demorou muitos anos para se efetivar, possa haver contribuído, a meu modo de ver, para uma perda recente da abertura para viver experiências mais transcendentais e misteriosas, tão presentes na UDV dos tempos antigos.
Podemos citar Max Weber: “A instituição é a morte do carisma.” Pois com o passar do tempo, a UDV se especializou em garantir às autoridades que estaria dentro da ordem institucional do país, e criou normas em seu seio que reprimiam de forma autoritária a liberdade da expressão espontânea do Ser. Penso que, ainda que tenham havido muitos esforços por parte de seus discípulos para manter a cultura cabocla que nos legou mestre Gabriel, muito mudou desde então. Parece que se perdeu parte da liberdade. Já não se pode, por exemplo, beber o vegetal na natureza (lugar de onde vem as plantas sagradas), nem tampouco participar de rituais de outras religiões que fazem uso do vegetal. Algumas decisões que vem do “Grande Conselho”, constituído pelos mestres formados pelo próprio M. Gabriel, parecem querer tirar dos dirigentes a capacidade de utilizar seu critério pessoal na resolução de alguns conflitos locais.
Os mestres da atual União do Vegetal tem que constantemente lidar com o poder. As vezes, alguém que ocupa este lugar pode confundir o lugar de Mestre com seus próprios pensamentos e passar a utilizar seu posto como forma de impor suas verdades.
Desta forma, o caminho e a vivência espiritual ficaram em segundo plano. Tal situação é motivo de questionamentos no próprio âmbito da UDV, pois todos, inclusive os mais antigos, percebem que atualmente o efeito do chá perdeu parte de sua intensidade. De fato, o ritual as vezes mais parece uma doutrinação, pois se tornou demasiado intelectualizado. Em geral, há um controle excessivo e uma falta de confiança básica no processo de cada um, no poder auto-regulador que o chá estimula.
Está claro que alguns ensinos do Mestre que permitiam a manifestação do carisma foram interpretados de maneira que manteve seus membros sob a tutela dos dirigentes, demasiado preocupados em manter a ordem estabelecida.
Como em toda sociedade patriarcal, a UDV pretende instaurar a retidão na vida das pessoas para colocar cada um em seu devido lugar. De fato, muitas pessoas que chegam desestruturadas, com dependência química de álcool, cocaína ou crack, deixam de se drogarem graças ao uso do vegetal.
Desta maneira, a UDV oferece um grande serviço à sociedade e seus cidadãos, pois goza do dom de recuperar membros desestruturados. Porém, é evidente que existe pouco trabalho sobre “si mesmo”. A maioria dos membros da UDV se desenvolvem até certo ponto e depois não sabem discernir entre o que é o ego e o que é a retidão. Misturam o ego e a espiritualidade. Não há discernimento para separar o ego do Ser. Se preocupam, isso sim, em discernir do bem do mal, de acordo com suas rígidas normas, mas desconhecem os motivos pelos quais se vem sempre obrigados a lidar com conflitos, desavenças e toda sorte de temas egóicos que permeiam os membros e as relações entre eles e que impedem o desenvolvimento pleno das potencialidades das pessoas.
Desta maneira, as ricas experiências produzidas pela ayahuasca não são elaboradas ou compreendidas na totalidade de seu precioso simbolismo e tenho a impressão de que vai passando o tempo e tudo segue igual.
Na UDV não dá atenção aos fenômenos corporais que surgem sob o efeito do chá. A expressão corporal não é vista com bons olhos e não é permitido dançar nos rituais. Os rituais, atualmente, tendem a privilegiar o campo intelectual, sem favorecer uma abertura para outras dimensões que alcançam além do intelecto.
A UDV é uma religião muito jovem, com pouco mais de cinquenta anos, que enfrenta uma série de dificuldades inerentes a seu crescimento acelerado e também no que diz respeito à sua mais alta finalidade, que é proporcionar crescimento espiritual unindo a seus discípulos. Seu principal desafio consiste em superar os limites impostos pela institucionalização e por sua herança patriarcal, que ainda impedem o aprofundamento do autoconhecimento e o trabalho sobre o ego. Ainda há a necessidade de promover a integração dos aspectos masculinos e femininos, tão necessários para o equilíbrio e desenvolvimento de uma espiritualidade mais plena, que inclua mais devoção, mas também compaixão e prazer.
Cláudio Naranjo é autor do Livro: “Ayahuasca – La enredadera del río celestial”. O presente texto é uma tradução do seu capítulo X
Desliguei-me da UDV há mais de 10 anos principalmente pelos motivos ora expostos. Percebi o ego inflado habitando a alma discípulos que subiam graus, o comportamento evidenciava; Muito curioso porque uma pessoa bem espiritualizada pressupõe uma ser humano humilde, suave, o que não correspondia às características de tantos irmãos daquele ambiente. Às vezes para ser considerado digno de entrar no seleto grupo da religião, bastava que você mostrasse empenho na limpeza do templo... Meio patético até. Max Weber foi muito sábio ao proferir tal axioma. Quando mais institucionalizada mais perde o carisma, mais perde a essência.
ResponderExcluirÉ isso, meus irmãos. Somos uma escola onde todos estão aprendendo a se melhorar e se desenvolver espiritualmente. Como dizemos: na União só existe um formado, todos os outros estão aprendendo. Por isso que não agradamos a todos, mas o importante é que um tanto de pessoas estão subindo degraus significativos na caminhada espiritual de cada um.
ResponderExcluirO mesmo acontece em todas as religiões, cada qual com sua doutrina e sua capacidade de atender à compreensão de seus discípulos. No mundo somos todos muito diversos e não nos identificamos com as mesmas coisas, por isso procuramos seguir, às vezes, os mesmos caminhos mas com veículos diferentes. O importante é respeitarmos a opção de cada um e nos ocuparmos com o nosso desenvolvimento espiritual, procurando ser pessoas do bem.
Cabe a nós da UDV termos a clareza de que estamos em busca da evolução. Somos uma religião onde ninguém é perfeito, mas onde estamos todos em busca dessa perfeição. Um dia chegaremos todos lá, com a graça de Deus.