Faço esse texto estimulado sobretudo pelo irrepreensível
artigo do Dr. Jacques Mabit, publicado originalmente na ‘Revues Synodies “Le
transpersonnel?” e traduzido do francês para o português por José Pimenta. (1)
O artigo trata essencialmente de como os brancos vem
idealizando seus ‘gurus indígenas’, e de como, entre outras coisas, trata-se de
um grande equívoco comparar pajés, xamãs e curandeiros com os mestres
transcendentais das tradições orientais. De fato, há uma grande confusão na
tentativa de fazer encaixar o xamanismo ayahuasqueiro amazônico dentro das
expectativas de transcendência das classes médias urbanas. Por isso, recomendo
muito a leitura do artigo: O MAL-ENTENDIDO NEOXAMÂNICO PODE SER GIGANTESCO,
publicado no blog Crônicas Indigenistas.
Esta breve postagem, não se trata portanto exatamente de uma
crítica ao artigo. Apenas o tomo como ponto de partida para prosseguir na
reflexão.
Pois sim, voltando ao título-pergunta: O equívoco
Neoxamânico é gigantesco. Mas o que em nosso mundo, não é?
Afinal, corremos o risco de achar que o mal-entendido esteja
delimitado ao universo do ‘neoxamanismo’. Ah!
Se sêsse! Diria o poeta nordestino.
Poderia começar apontando os equívocos a um dos pilares do
pensamento ocidental: a concepção aristotélica que divide homem e animal,
natureza e cultura. Aristóteles nos fez crer que os animais não possuiam linguagem
e com base nessa concepção EQUIVOCADA construiu a base do pensamento ocidental.
Contudo, quanto mais evoluem os métodos
de observação científica, mas difícil fica determinar uma linha exata que nos separe
dos animais. Animais tem linguagem. Animais produzem ferramentas. Animais têm
organizações sociais mais complexas do que supunham nossos preconceitos.
Animais transmitem conhecimentos adquiridos. Um equívoco bem maior e de consequências
bem mais nefastas. E que no entanto, está nas bases do pensamento ocidental.
Outra base de nosso pensamento ocidental se dá pelo
paradigma judaico-cristão. Noções de céu e inferno, pecado e perdão, Deus e o
Diabo permanecem vivas em nossa sociedade e continuam a influenciar nosso modo
de pensar. Mesmo àqueles que se dizem ateus. Trata-se pois, de ideias que formam a base de
nossa civilização, que podem não passar de um grande equívoco, ou uma coleção
de concepções equivocadas, forjadas ao longo do tempo para melhor acomodar os
conceitos sociais de cada época.
Poderia ainda passar dias debatendo sobre as linhas
filosóficas e suas refutações e contra-refutações que tão brilhantemente ocupam
a vida acadêmica. Aliás, o que seria da vida acadêmica sem os equívocos.
Digo isso, quase como uma forma de ‘aliviar’ a turma do neoxamanismo. Não haveria como jovens de classe média urbana ‘acertarem’ de primeira quais os ‘valores’ que movem o ‘xamanismo de raiz’.
Quem está em uma busca, nunca sabe ao certo o que vai encontrar. Colombo, por exemplo, encontrou a América, mas buscava a Índia. Mais um equívoco histórico.
Quem está em uma busca, nunca sabe ao certo o que vai encontrar. Colombo, por exemplo, encontrou a América, mas buscava a Índia. Mais um equívoco histórico.
‘A sociedade de
consumo faz florescer esta forma de xamanismo’
E por falar em ‘valores’, mais um equívoco: a ideia de que a
cobrança em valores monetários seja uma ‘deturpação’ dos ‘valores espirituais’
do xamanismo. Um concepção equivocada. Sobre isso, recomendo muito a leitura do
texto ‘As raízes do Xamanismo Moderno’, de Gayle Highpine.(2). É dela a frase neste
subtítulo: ‘A sociedade de consumo faz florescer esta forma de xamanismo’
Em seu artigo, a etnobotânica esclarece que já era comum
antes mesmo da chegada do homem branco, nas comunidades do Alto rio Napo, que seus xamãs cobrassem algum tipo de ressarcimento quando realizavam
trabalhos fora de suas comunidades. A autora explica que o pajé ou xamã está
obrigado por laços de parentesco, a cuidar de sua comunidade. Em troca, recebe
o cuidado da sua comunidade para consigo. Para além destes limites, não há
obrigação e portanto, há que se buscar novas formas de compensação. A autora
ainda discorre que, foi justamente esta fluidez que possibilitou no passado o surgimento
de uma rica cultura ayahuasqueira, espalhada pela Amazônia ocidental entre as bacias
dos rios Napo, Ucaially e Putumayo - com as trocas de informações entre as
diferentes comunidades. Segundo a autora, esse movimento seria responsável pelo
florescimento HOJE desta cultura ayahuasqueira.
Se olharmos para o passado, de povos indígenas que viviam,
não isolados, mas como uma intrínseca rede de cooperação e colaboração (e às
vezes conflitos também, que ninguém é de ferro!), talvez não nos surpreendamos
tanto, com a reprodução destas redes na sociedade pós-industrial.
Essa é uma das razões pela qual não vejo com maus olhos,
todo esse movimento em torno do rapé, ou mesmo da ayahuasca por exemplo. Significa
um aporte financeiro a estas comunidades, cujas necessidades não irão cessar
caso este fluxo seja interrompido. Quem já visitou uma comunidade no Acre, por exemplo,
sabe da grande necessidade de combustível e peças de reposição para embarcações. Além é claro de necessidades individuais que surgem a partir do
contato. Não serão nossas utopias de ‘pureza transcendental’ que irão melhorar
suas condições de vida.
Um dos resultados práticos desse movimento, é o maior
interesse dos jovens indígenas, pela forma de fazeres e reprodução cultural. A
possibilidade de algum ganho material, reforça esse interesse.
O Xamã como ‘aquele
que sai’
Outro aspecto que merece ser destacado é sobre as idas e
vindas de pajés e aprendizes. Diz o preconceito comum de que ‘índio deve ficar
na aldeia’. Mas não é assim que era no passado, quando os povos indígenas
podiam andar livremente pelo continente. Estão suficientemente documentadas as relações
de comércio que ocorriam na América antes da chegada do homem branco. É certo que
estas relações não se limitavam apenas ao comércio tal qual como concebemos
hoje. É possível que ocorressem de modo mais ou menos cerimonial e
ritualístico, já que boa parte destes objetos de troca possuíam valor simbólico,
afetivo, espiritual, ou mágico, como por exemplo: conchas e penas. Talvez nos
surpreendêssemos ao descobrir que alguns dos itens do chamado ‘comércio do
sagrado’ já eram negociados antes mesmo de Colombo. De maneira análoga, podemos
pensar nas feiras medievais e o comércio associado de imagens e relíquias. Ou
seja, nada de novo sob o Sol.
Eduardo Luna vai mais além: ‘O Xamã é aquele que transcende
os limites da sociedade e vai para fora, onde há poder’. (3)
É possível pensar que os xamãs que alcançam mundos distantes
através dos sonhos e das plantas maestras, aprenderam também a viajar pelas
mesmas ‘Veias abertas da América Latina’ de onde foi retirado ouro, prata,
diamantes, madeira... E quem irá poder condená-los por isso?
‘Equivocação controlada’
A antropóloga da USP Aline Ferreira Oliveira, em seu artigo (4),
cita a expressão cunhada por Viveiros de Castro de ‘equivocação controlada’,
para explicar o uso e adaptação da linguagem dos pajés amazônicos ao contexto
urbano.
Diria que não há outro caminho para o encontro entre jovens de
classe média urbana e pajés (ou aprendizes) amazônicos que não passe pelo
equívoco. Para entender-se e fazer-se entender é preciso minimamente ‘equivocar-se’,
mas trata-se de uma ‘equivocação controlada’ sem o que, afinal, não haveria
linguagem possível.
É ainda a mesma autora que nos fala sobre a ‘produção dos
corpos para circulação do conhecimento’ por meio das dietas, tal qual vem
ocorrendo especialmente entre os Yawanawá e Huni Kuin.
Os indígenas tem tratado portanto, de ‘capacitar os brancos a
fazer bem feito’, em um processo que podemos compreender como a continuidade,
ou uma nova etapa daquilo que os indígenas do Acre denominam ‘amansar os
brancos’.
Viva o vazio da
Classe Média!
Por fim, queria aqui dar um viva ao vazio da classe média!
Dizem as filosofias orientais que somente um copo vazio pode receber um novo
conteúdo. Aliás, eu próprio venho há anos tentando esvaziar o meu, e olha...
Que difícil!
Estes jovens de classe média urbana que não veem mais
motivação em trocar de carro todo ano, frequentar o clube da moda, ou assistir
à UFC estão se voltando, de um jeito de outro, às culturas antigas, porém vivas
de povos milenares e que, ainda que equivocadamente, certamente tem muito a nos
ensinar.
Se tivesse algo a lamentar sobre todo este processo, não
seria pelas viagens dos pajés ou a comercialização em torno do sagrado, mas
principalmente pela carência de uma maior organização formal que pudesse melhor
interpretar, reinterpretar, debater, discutir, explicar a rica epistemologia que
envolve este aprendizado. Lamento não haver algo semelhante a uma universidade
em que tudo isso pudesse ser ensinado de maneira mais ou menos sistematizada e
que houvessem até quem sabe, bolsas de estudo. Lamento sobretudo saber que
sábios da floresta como, Tatá, falecido no ano passado, se vão sem deixar
rastro (ainda que deixem sim, muitos discípulos, graças em parte a todo esse
movimento) ou como o centenário Yawarani, cuja profundidade do entendimento da
cultura Yawanawá o faz um erudito, sem contudo obter o reconhecimento que
deveria da sociedade.
Os processos que ocorrem hoje, dentro daquilo que alguns
denominam como sendo o ‘circuito do exotismo no Brasil’ ainda que ‘mal
enjambrada’ se apresenta como a melhor saída possível para a permanência e
reprodução de uma forma de conhecimento.
Empatia e Alianças
É preciso que se diga também que nestas trocas há ainda um
subproduto muito valioso: a empatia. São tempos duros para os indígenas no
Brasil (sempre foram, mas ultimamente a ofensiva parece ainda maior). Angariar a
empatia no meio urbano e tratar de estreitar laços com potenciais aliados me
parece ser parte de uma estratégia política ainda mais ampla e quem vem sendo
alcançada com relativo sucesso. Alianças proporcionam uma troca de maior valor
que pode beneficiar a um indígena específico, um grupo, ou a toda comunidade. Cada
povo tem uma dinâmica diferente em relação a construção destas alianças mas quão
bom seria se todos pudessem contar com uma rede de apoiadores no meio urbano.
Auto Regulação
Me soa meio distópica a ideia de órgãos federais regulando o
livre trânsito das medicinas, itens do ‘sagrado’ (em alguns casos acho
justificável, quando por exemplo, trata-se material proveniente de animais
silvestres) e mesmo do conhecimento.
Por isso penso que o melhor seria a auto-regulação.
Não se pode debitar na conta do neoxamanismo a existência de
falsos pajés. Falsos médicos, falsos advogados e falsos jornalistas estão aí
aos montes, mesmo sendo estas profissões regulamentadas (exceto jornalismo, graças a Gilmar Mendes). Em suas respectivas
aldeias, contudo, todos sabem quem é e quem não é pajé e o ‘processo de
certificação’ posso garantir que é bem mais rigoroso que o exame da OAB, por
exemplo.
Mais interessante que termos um órgão oficial emitindo ‘carteirinhas
de pajé’, seria se estas próprias comunidades fossem capazes de definir isso. Nos
países vizinhos, Equador, Colômbia e Peru existem formas de federações que dão
algum respaldo a isso, apesar que no final das contas o que vale mesmo é a
reputação construída na própria comunidade. Ainda assim, parece ser uma
alternativa interessante que daria algum respaldo oficial aos indígenas em
viagem e quem sabe, responder quando algum órgão de governo, empresa, ONG ou meio
de comunicação meter os pés pelas mãos, como aconteceu com a Folha de São Paulo
na reportagem sobre ‘Rapé na Balada’.
Se observarmos com atenção, talvez vejamos que há muito
menos de exótico nessas trocas entre indígenas e brancos de classe média do que
se imagina.
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1. MARBIT, Jacques. Traduzido por José Pimenta. O Mal-Entedido Xamânico pode ser Gigantesco. 2. HIGHPINE, Gayle. 'As Raízes do Xamanismo Ayahuasqueiro Moderno' fragmento de 'Unraveling the Misteries of the ayahuasca origins'
3. LUNA, Luis Eduardo. 'Ayahuasca e o Conceito de Realidade'
4. OLIVEIRA, Aline Ferreira.Plantas, dietas, éticas yawanawa: iniciações xamânicas contemporâneas.(FFLCH/USP/Universidade de São Paulo).
4. OLIVEIRA, Aline Ferreira.Plantas, dietas, éticas yawanawa: iniciações xamânicas contemporâneas.(FFLCH/USP/Universidade de São Paulo).
Imagem: Al Vivero
IMDr. Jacques Mabit
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