"Na floresta não existe nem rebanho, nem pastor
Quando o inverno caminha, segue seu distinto curso como faz a primavera
Os homens nasceram escravos daquele que repudia a submissão
Se ele um dia se levanta, lhes indica o caminho, com ele caminharão
Dá-me a flauta e canta!
O canto é o pasto das mentes, e o lamento da flauta perdura mais que rebanho e pastor"
Gibran Khalil Gibran
O canto é o pasto das mentes, e o lamento da flauta perdura mais que rebanho e pastor"
Gibran Khalil Gibran
Ovelhas Radicais
Korou- Há já fora uma linda lua florestal. Virgem, intocada a não ser pelos nativos caçadores nauábos que durante milênios conviveram com sua fauna e flora exóticas. Isto até a chegada dos primeiros jandaianianos em busca das árvores-de-leite e que abriram os seus roçados para plantio de milho e mandioca em uma escala crescente. Em seguida vieram os sulistas. Piratininguanos, quaritubanos, pampeiros e também os luzianos, anaguases, anapolitanos, que apesar de não serem sulistas, também assim foram chamados. Trouxeram os primeiros rebanhos de bois, ovelhas e búfalos nas partes alagadas da lua. A maioria desta segunda leva, deixou a lua depois de terem experimentado as terríveis febres-da-lua, provocadas por insetos. Por esta razão foram chamados de sangue-fraco pelos jandaianianos que suportaram bem o clima da lua. Os sulistas de sangue-fraco deixaram a lua, mas seus rebanhos permaneceram e foram adotados pelos jandaianianos. Depois que as árvores-de-leite perderam o seu valor, a população da lua, abandonada à própria sorte, converteu-se em uma malta ainda mais selvagem do que os primeiros habitantes que passaram a destruir as florestas nativas a fim de formarem pastos para os rebanhos, agora sua única fonte de sobrevivência. Sem a vegetação nativa, os pastos antigos converteram-se em mangues e lamaçais fétidos até que muito pouco sobrou do antigo modo de vida da lua. Restavam ainda algumas matas no lado ocidental da lua, mas do lado oriental, uma única gigantesca árvore permanecia de pé e ao redor dela se agrupavam as dezenas de povos nativos. Era chamada de Pedestal-do-Céu devido a sua altura quilométrica. Suas raízes desciam em alas e forneciam abrigo ao vento ao passo que os galhos e folhas da árvore forneciam sombras refrescantes em meio ao sol escaldante da lua. De seu tronco corria uma água doce, saborosa e com poderes medicinais, um alento à água salobra da lua. Milhares de pessoas vinham todos os anos, de diferentes partes da galáxia para se tratarem com a água de Pedestal-do-Céu.
Por esta razão havia uma centenas de curandeiros, alguns poucos verdadeiros e outra dúzia de charlatães que se punham a atender os pacientes que
chegavam a Pedestal.
Os Ovelhas Radicais não poderiam usar a violência, o que era
proibido pelos seus costumes, mas tinham métodos muito mais eficazes. Eles
podiam através de um encantamento alcançar o vale das sombras e evocar os
pesadelos- vivos e a partir de suas visões aterradoras persuadir os viajantes a
uma conversão.
Em silêncio Ata Ïsis
seguia atrás de mim. Percebendo minha irritação pelo episódio do comunicador,
ela evitava dizer qualquer palavra.
Enquanto caminhávamos pelo cipoal, percebi que éramos
seguidos. Caminhei por cerca de uma hora fingindo não percebê-los. Quando
finalmente chegamos a uma pequena área aberta, sinalizei a Ata Ïsis para que
parasse.
Não demorou nada para que nossos perseguidores se
revelassem. Os Ovelhas Radicais traziam o estandarte da estrela de seis pontas.
- Ordeno que parem nome de Nosso Senhor Deus, o Grande
Pastor do Universo!
- Por que devo obedecer, Ovelha, se muito antes de seus Deus
Pastor chegar, o Meu já andava nestas
matas?
- Blasfêmia! baliram as ovelhas
- Você está preso em nome do Deus Pastor, você e esta
prostituta que o acompanha!
- Ela não é nenhuma prostituta! É minha irmã mais nova. Viemos
em busca de cura.
- Pagãos! Só Deus
pode curar! Não os seus bruxos e demônios bebedores de “água-imunda”. Pedestal
está amaldiçoada. Tombaremos ela e faremos um grande altar ao Deus-Pastor, onde
todos poderão adorá-lo. Até mesmo você, depois que se converter ao Deus-Pastor
e se tornar mais uma ovelha de seu rebanho.
- Não perca o seu
tempo, Ovelha, não ando em rebanhos e tampouco preciso de altares. O que eu
adoro já vive em meu sangue! Respondi
- Blasfêmia, bruxaria, paganismo! Só o Grande Deus merece
ser adorado.
- Blasfêmia é o que vocês estão fazendo com estas matas.
Muito antes de seu Deus Pastor chegar aqui com seus rebanhos, o Meu Deus
Caçador já caçava nestas matas, os rebanhos que ele mesmo criou, se alimentando
do fruto das árvores que ele mesmo plantou. Olhe a sua volta. Veja a infinidade
de pássaros e de animais que se alimentam das árvores que vocês destroem em
nome de seu Deus. Eu digo, meu Deus é mais capaz do que o seu. Enquanto o seu
transforma em deserto estéril as pastagens com o número cada vez maior de
ovelhas, o meu cultiva o equilíbrio megadiverso não apenas desta lua, mas de
todas as galáxias.
- Sim, sem dúvida, mas a mente limitada de suas ovelhas, não
consegue ver além dos seus pastos e balidos.
Olhe à sua volta, há muito mais
aqui para ser aprendido e conhecido. Estamos em um imenso templo de poder,
conhecimento e cura. Mas para vocês, ovelhas ele está somente naqueles seus
templos de gosto duvidoso? Um Deus de bom gosto viveria na beleza que ele mesmo
criou, não acha ?
- Sem argumentos, os Ovelhas passaram a balir furiosa e
desconexamente repetindo as acusações de blasfêmia e heresia.
Ata Ïsis protegia-se atrás de mim, com medo e tremeu-se toda
neste momento, enquanto os ovelhas baliam ameaçadoramente. Sabia que não nos
matariam e não desejava uma interminável discussão teológica com aqueles
imbecis. Sabia qual seria o nosso destino e imaginei que quanto antes nos
levassem, mais rápido me livraria daquele torturante e estéril debate.
- Vale das Sombras! Vale das Sombras! Gritaram
- Você verá pagão, no vale das sombras que seus deuses
pagãos não passam de demônios disfarçados.
E então diante da verdade poderá abraçar a nova vida.
O Vale das Sombras
Os Ovelhas fizeram um círculo ao nosso redor e de mãos dadas
passaram a entoar cânticos na sua língua do deserto.
Senti um tremendo peso em minhas costas, em meu corpo e
adormeci. Despertei no Vale das Sombras. Ata Ïsis ao meu lado permanecia
dormindo, mas os ovelhas estavam todos despertos e baliam ferozmente.
- Veja, pagão veja com seus próprios olhos o castigo que o
espera pela eternidade.
- Olhei e vi centenas, ou talvez milhares de corpos
putrefatos que se moviam um por cima dos outros, ao longo de centenas de
quilômetros em um extenso vale. Eles gemiam e choravam, estendendo suas mãos em
carne viva para nós que passávamos entre eles.
Malditos. Pensei. São tão hábeis em manipular as sombras em
pesadelos-vivos. Será que se soubessem que poderiam das mesmas sombras tirar
vida, luz e encanto continuariam a criar monstros e deformidades?
Enquanto meditava sobre a fraqueza da necessidade humana ao
sofrimento, Ata Ïsis começou a despertar. Antes que abrisse totalmente os
olhos, disse-lhe em seus ouvidos:
-Tudo que verá aqui é
apenas um sonho. Um sonho ruim. Tente não se assustar. Eu estou com você. Logo
vamos acordar e sentir a brisa suave da manhã.
Temia pelo pior. se Ata Ïsis gritasse ou corresse poderia acordar
e levar consigo um pesadelo para a sua vida desperta.
Para minha total surpresa. Ata Ïsis permaneceu serena, ao
que parece divertindo-se com que imaginava fosse apenas mais um filme de
terror. Isso pareceu incomodar aos ovelhas, que passaram a engendrar pesadelos
cada vez mais terríveis. Sua capacidade era tanta que não apenas tripas e
órgãos ensangüentados eram vistos em abundância, ao lado dos mais inimagináveis
instrumentos de tortura. O mais difícil para mim eram as imagens de inocentes
crianças sendo torturadas das mais diferentes formas possíveis. Não havia
limites para a crueldade em suas mentes.
- E então, pagão, é
isto o que você deseja para a eternidade?
- Cantemos então uma
ode de louvor ao medo e às boas intenções que ele traz!
- Aceite o Deus Pastor
e ele lhe conduzirá pelos campos verdejantes e iluminados do além.
- Agradeço a
preocupação com a minha alma, mas eu prefiro passar a eternidade em bosques
sombreados.
- Você não se cansa
pagão. O que mais terei de mostrar para que você se convença da verdade.
Gostaria de ver como sofrem neste vale seus preciosos ancestrais?
- Não perca seu tempo,
erga os olhos e veja quem está ali acima de toda a dor e sofrimento, sentado naquele
trono .
O Ovelha então
levantou o olhar e viu que erguia-se acima de todo sangue e podridão um
magnífico trono de pedra.
- Vamos ovelha, erga seus olhos e veja quem
está sentado no trono.
O Ovelha ergueu seus olhos e não conseguiu esconder a sua
surpresa. Seus seguidores caíram aos chãos pedindo misericórdia e Ata Ïsis,
achando se tratar apenas de um sonho exótico, olhou alternadamente para mim e
para aquele que estava sentado no trono.
- Maldito seja!Você
não é apenas um pagão. Você é o próprio demônio!
Ele não era o único capaz de manipular as sombras.
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