quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Onde o Vento faz a Curva IV - Ovelhas Radicais


"Na floresta não existe nem rebanho, nem pastor
Quando o inverno caminha, segue seu distinto curso como faz a primavera
Os homens nasceram escravos daquele que repudia a submissão
Se ele um dia se levanta, lhes indica o caminho, com ele caminharão

Dá-me a flauta e canta!
O canto é o pasto das mentes, e o lamento da flauta perdura mais que rebanho e pastor"


Gibran Khalil Gibran



Ovelhas Radicais

Korou- Há já fora uma linda lua florestal. Virgem, intocada a não ser pelos nativos caçadores nauábos que durante milênios conviveram com sua fauna e flora exóticas. Isto até a chegada dos primeiros jandaianianos em busca das árvores-de-leite e que abriram os seus roçados para plantio de milho e mandioca em uma escala crescente. Em seguida vieram os sulistas. Piratininguanos, quaritubanos, pampeiros e também os luzianos, anaguases, anapolitanos, que apesar de não serem sulistas, também assim foram chamados. Trouxeram os primeiros rebanhos de bois, ovelhas e búfalos nas partes alagadas da lua. A maioria desta segunda leva, deixou a lua depois de terem experimentado as terríveis febres-da-lua, provocadas por insetos. Por esta razão foram chamados de sangue-fraco pelos jandaianianos que suportaram bem o clima da lua. Os sulistas de sangue-fraco deixaram a lua, mas seus rebanhos permaneceram e foram adotados pelos jandaianianos. Depois que as árvores-de-leite perderam o seu valor, a população da lua, abandonada à própria sorte, converteu-se em uma malta ainda mais selvagem do que os primeiros habitantes que passaram a destruir as florestas nativas a fim de formarem pastos para os rebanhos, agora sua única fonte de sobrevivência. Sem a vegetação nativa, os pastos antigos converteram-se em mangues e lamaçais fétidos até que muito pouco sobrou do antigo modo de vida da lua. Restavam ainda algumas matas no lado ocidental da lua, mas do lado oriental, uma única gigantesca árvore permanecia de pé e ao redor dela se agrupavam as dezenas de povos nativos. Era chamada de Pedestal-do-Céu devido a sua altura quilométrica. Suas raízes desciam em alas e forneciam abrigo ao vento ao passo que os galhos e folhas da árvore forneciam sombras refrescantes em meio ao sol escaldante da lua. De seu tronco corria uma água doce, saborosa e com poderes medicinais, um alento à água salobra da lua. Milhares de pessoas vinham todos os anos, de diferentes partes da galáxia para se tratarem com a água de Pedestal-do-Céu.


Por esta razão havia uma centenas de curandeiros, alguns poucos verdadeiros e outra dúzia de charlatães que se punham a atender os pacientes que chegavam a Pedestal.

Havia diferentes caminhos para se chegar a Pedestal. O mais usual era através do rio, mas optei por caminhar através das matas ciliares, um cipoal emaranhado que fora abandonado por ser imprestável a qualquer rebanho. Esperava que a rota me mantivesse longe dos Ovelhas Radicais, um grupo religioso que odiava as velhas tradições da lua e que costumava abordar os viajantes em busca de cura e ameaçá-los para que se convertessem.

Os Ovelhas Radicais não poderiam usar a violência, o que era proibido pelos seus costumes, mas tinham métodos muito mais eficazes. Eles podiam através de um encantamento alcançar o vale das sombras e evocar os pesadelos- vivos e a partir de suas visões aterradoras persuadir os viajantes a uma conversão.

Em silêncio Ata Ïsis seguia atrás de mim. Percebendo minha irritação pelo episódio do comunicador, ela evitava dizer qualquer palavra.

Enquanto caminhávamos pelo cipoal, percebi que éramos seguidos. Caminhei por cerca de uma hora fingindo não percebê-los. Quando finalmente chegamos a uma pequena área aberta, sinalizei a Ata Ïsis para que parasse.

Não demorou nada para que nossos perseguidores se revelassem. Os Ovelhas Radicais traziam o estandarte da estrela de seis pontas.
- Ordeno que parem nome de Nosso Senhor Deus, o Grande Pastor do Universo!
- Por que devo obedecer, Ovelha, se muito antes de seus Deus Pastor chegar, o Meu já andava  nestas matas?
- Blasfêmia! baliram as ovelhas
- Você está preso em nome do Deus Pastor, você e esta prostituta que o acompanha!
- Ela não é nenhuma prostituta! É minha irmã mais nova. Viemos em busca de cura.
 - Pagãos! Só Deus pode curar! Não os seus bruxos e demônios bebedores de “água-imunda”. Pedestal está amaldiçoada. Tombaremos ela e faremos um grande altar ao Deus-Pastor, onde todos poderão adorá-lo. Até mesmo você, depois que se converter ao Deus-Pastor e se tornar mais uma ovelha de seu rebanho.
- Não perca o seu tempo, Ovelha, não ando em rebanhos e tampouco preciso de altares. O que eu adoro já vive em meu sangue! Respondi
- Blasfêmia, bruxaria, paganismo! Só o Grande Deus merece ser adorado.
- Blasfêmia é o que vocês estão fazendo com estas matas. Muito antes de seu Deus Pastor chegar aqui com seus rebanhos, o Meu Deus Caçador já caçava nestas matas, os rebanhos que ele mesmo criou, se alimentando do fruto das árvores que ele mesmo plantou. Olhe a sua volta. Veja a infinidade de pássaros e de animais que se alimentam das árvores que vocês destroem em nome de seu Deus. Eu digo, meu Deus é mais capaz do que o seu. Enquanto o seu transforma em deserto estéril as pastagens com o número cada vez maior de ovelhas, o meu cultiva o equilíbrio megadiverso não apenas desta lua, mas de todas as galáxias.
- Só existe Um Criador de tudo!
- Sim, sem dúvida, mas a mente limitada de suas ovelhas, não consegue ver além dos seus pastos e balidos. 

Olhe à sua volta, há muito mais aqui para ser aprendido e conhecido. Estamos em um imenso templo de poder, conhecimento e cura. Mas para vocês, ovelhas ele está somente naqueles seus templos de gosto duvidoso? Um Deus de bom gosto viveria na beleza que ele mesmo criou, não acha ?
- Sem argumentos, os Ovelhas passaram a balir furiosa e desconexamente repetindo as acusações de blasfêmia e heresia.

Ata Ïsis protegia-se atrás de mim, com medo e tremeu-se toda neste momento, enquanto os ovelhas baliam ameaçadoramente. Sabia que não nos matariam e não desejava uma interminável discussão teológica com aqueles imbecis. Sabia qual seria o nosso destino e imaginei que quanto antes nos levassem, mais rápido me livraria daquele torturante e estéril debate.
- Vale das Sombras! Vale das Sombras! Gritaram
- Você verá pagão, no vale das sombras que seus deuses pagãos não passam de demônios disfarçados.  E então diante da verdade poderá abraçar a nova vida.

O Vale das Sombras

Os Ovelhas fizeram um círculo ao nosso redor e de mãos dadas passaram a entoar cânticos na sua língua do deserto.
Senti um tremendo peso em minhas costas, em meu corpo e adormeci. Despertei no Vale das Sombras. Ata Ïsis ao meu lado permanecia dormindo, mas os ovelhas estavam todos despertos e baliam ferozmente.
- Veja, pagão veja com seus próprios olhos o castigo que o espera pela eternidade.
- Olhei e vi centenas, ou talvez milhares de corpos putrefatos que se moviam um por cima dos outros, ao longo de centenas de quilômetros em um extenso vale. Eles gemiam e choravam, estendendo suas mãos em carne viva para nós que passávamos entre eles.
Malditos. Pensei. São tão hábeis em manipular as sombras em pesadelos-vivos. Será que se soubessem que poderiam das mesmas sombras tirar vida, luz e encanto continuariam a criar monstros e deformidades?
Enquanto meditava sobre a fraqueza da necessidade humana ao sofrimento, Ata Ïsis começou a despertar. Antes que abrisse totalmente os olhos, disse-lhe em seus ouvidos:
-Tudo que verá aqui é apenas um sonho. Um sonho ruim. Tente não se assustar. Eu estou com você. Logo vamos acordar e sentir a brisa suave da manhã.
Temia pelo pior. se Ata Ïsis gritasse ou corresse poderia acordar e levar consigo um pesadelo para a sua vida desperta.
Para minha total surpresa. Ata Ïsis permaneceu serena, ao que parece divertindo-se com que imaginava fosse apenas mais um filme de terror. Isso pareceu incomodar aos ovelhas, que passaram a engendrar pesadelos cada vez mais terríveis. Sua capacidade era tanta que não apenas tripas e órgãos ensangüentados eram vistos em abundância, ao lado dos mais inimagináveis instrumentos de tortura. O mais difícil para mim eram as imagens de inocentes crianças sendo torturadas das mais diferentes formas possíveis. Não havia limites para a crueldade em suas mentes.
- E então, pagão, é isto o que você deseja para a eternidade?
- Cantemos então uma ode de louvor ao medo e às boas intenções que ele traz!
- Aceite o Deus Pastor e ele lhe conduzirá pelos campos verdejantes e iluminados do além.
- Agradeço a preocupação com a minha alma, mas eu prefiro passar a eternidade em bosques sombreados.
- Você não se cansa pagão. O que mais terei de mostrar para que você se convença da verdade. Gostaria de ver como sofrem neste vale seus preciosos ancestrais?
- Não perca seu tempo, erga os olhos e veja quem está ali acima de toda a dor e sofrimento, sentado naquele trono .
 O Ovelha então levantou o olhar e viu que erguia-se acima de todo sangue e podridão um magnífico trono de pedra.
 - Vamos ovelha, erga seus olhos e veja quem está sentado no trono.
O Ovelha ergueu seus olhos e não conseguiu esconder a sua surpresa. Seus seguidores caíram aos chãos pedindo misericórdia e Ata Ïsis, achando se tratar apenas de um sonho exótico, olhou alternadamente para mim e para aquele que estava sentado no trono. 
- Maldito seja!Você não é apenas um pagão. Você é o próprio demônio!   
Ele não era o único capaz de manipular as sombras.



                           

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