sábado, 25 de agosto de 2012

Onde o vento faz a curva III


Travessia
- Como você pode querer ir comigo, ao menos sabe para aonde estou indo?
- Não me importa, desde que me leve com você. Mas a propósito para aonde está indo?
- Para a guerra

A mulher-cuco olhou fixamente para um ponto além de mim, e ficou em silêncio.

- O que foi? Perguntei, enquanto olhava para trás.

- Nada, agora eu entendi o sonho. Beijava um rapaz e ele estava fardado. Era você.

- E o que acontecia?

- Não me lembro.

- Isso não é bom!

- O que não é bom? Beijar um rapaz fardado?

- Não. O fato de você não se lembrar. Significa que terá que ver com os próprios olhos e vivenciar. Se tivesse se lembrado, não precisaria mais da experiência e estaria livre dela. E por falar nisso, eu me lembro exatamente do que eu vim fazer e já está na minha hora. Vou partir.

- Um beijo?

Disse de modo tão meigo e delicado que tive vontade apenas de abraçá-la. Abracei seu corpo pequeno. Senti seu coração batendo compulsivamente como se quisesse pular fora do peito. Era o seu desejo de menina. Partir.

O mesmo desejo pulsava em mim, mas meu coração aprendera a esperar pacientemente, ainda que às vezes fosse dolorido saber que ainda não era a hora.

- Como é o seu nome?

- Atah Ïsis

Uma sacerdotisa de Isis, pensei. Que interessante! E também o nome de uma acompanhante de guerra.

- Bem, Ata Ïsis, minha palavra final é não. Terei de passar pelo Vale das Sombras, e com este coraçãozinho medroso, minha filha, você será uma presa suculenta e atrairá um bocado daquelas hienas para cima de mim. Obrigado, já tenho problemas de mais.

Sai andando e ela ainda veio atrás de mim, aos prantos.

- O fato de você chorar, não me comove. Pelo contrário, apenas me dá a certeza de que não está pronta para esta viagem. Já tenho problemas demais.

Ela agora soluçava e convulsionava aos choros. Não saía uma palavra de sua boca, ainda que eu esperasse por isso. Abraçou-me, como se quisesse me impedir de sair. Suas lágrimas eram quentes e molharam minha roupa.

Senti uma imensa dor por deixá-la, o Cuco. Suas lágrimas, seu choro convulsionado, transformaram-se em uma canção. Uma canção antiga que como um grito de desespero atingiu o meu coração. Tentei lembrar da canção. Travessia era o seu nome.   

- V-v-v- você tem que me levar ! Finalmente falou

- Eu não tenho nada! Não sou nada seu. Não tenho obrigações para com você ou sua casa...

Neste momento parei de falar. Lembrei-me de que ela era um cuco e a sua casa poderia ser qualquer uma. De tantas ordens celestiais das galáxias, uma certamente era a sua. Quiçá uma das quais tinha obrigação e compromisso firmado. Seria ela um presente? Ou quem sabe uma encomenda? Como membro da ordem dos Chasquis não poderia recusar levá-la. Mas ainda assim, não havia clareza do destino. Assim sendo, não me cabia afinal, obrigação nenhuma com ela.

- Uma pena deixar este Cuco para trás. Pensava enquanto embarcava em minha nave em direção à Lua de Korou- Há. – Mas ia pesar demais na cabine da minha pequena nave. 

***

Viagem a Korou-Há

- Korou-Há, hawê hanhewê ! Saudaram-me os simpáticos nativos da lua assim que desci da nave no espaço-porto.

- Seja bem vindo vós que chega a Korou-Há!  Traduziu o intriguento administrador da lua, Couro-de-Cervo.
- Conheço o idioma nativo, Couro-de-Cervo. Não preciso de jandaianianos para traduzi-lo para mim.

- Mesmo após tantos anos continuas arrogante, sulista. O que trazes para nós?

- Sulista eres tu madre! Pensei, mas disse apenas – Para você nada. Nada além da minha amizade sincera, caso precise da minha voz no conselho quando me perguntarem se você ainda continua traficando água-da-vida e esmeraldina. A propósito, o que seriam naqueles tambores?

- As leis da galáxia são severas para quem leva a palavra-da-floresta aos quatro cantos do universo, irmão.

-Bem, estes sãos os seus problemas. Eu cuido dos meus. Vou surcar o rio até Pedestal. 

- Veio visitar a bruxa tawantinsuiana de novo?

- Isso não é da sua conta. O rio é livre e você é apenas o administrador, não o dono da lua.

-Quatro pedras na mão. Típico sulista. Perguntei apenas para lhe oferecer a generosa ajuda de um guia e alguns de meus seguranças particulares. Seria terrível se caísse nas garras das Ovelhas Radicais.

- Agradeço e dispenso a ajuda de seus guias cegos e seguranças ‘aluados’*. Seriam os primeiros a caírem de joelhos aos ovelhas para fugirem das sombras quando eles evocarem os  pesadelos-vivos.

- Bem que assim seja. Lhe desejo sorte, amigo.

- Olhamos um no olho do outro. Um olhar malicioso, mas ao mesmo tempo de cumplicidade. Couro-de-Cervo era um escroto e ele provavelmente achava o mesmo de mim. Mas sabíamos que estávamos do mesmo lado da batalha.

- Grato amigo, a propósito, como estão a mulher e os filhos?

- Bem, graças a Deus. Ana está forte depois de ter dado a luz. Tem muito leite, apesar de ser uma sulista de sangue fraco como o seu.

- Bem, parece que você gosta das sulistas de sangue fraco. Talvez porque não agüente as nativas de sangue forte de Nova Constelação.

-Por falar nisso, tem notícias de Hon-Zá e seus filhos?

- Meus filhos estão bem no centro-sul galático. Quanto a Hon-Zá, bem, não tenho notícias dela desde a última vez que tentou me matar em uma tocaia em Buritis.

- Hahaha! Depois sou eu quem não agüento as nativas!

- As leis galácticas são severas quantos aos homens, e frouxas em relação às mulheres.Culpa da sua raça de jandaianianos que tratam as mulheres como bichos. Se tratasse do assunto à maneira tradicional, Hon-Zá não teria mais dentes na boca, e eu estaria no cárcere em Hipotomaia.

- Bem, estes parece que são os seus problemas, não é mesmo?

- Mas deixemos de lado nossas farpas etnocêntricas.Tenho mais o que fazer do que discutir nossas diferenças culturais.

- Quando pretende voltar?

-Ainda não tenho previsão.

- Mais uma vez, boa sorte na viagem!

-Grato amigo, felicidades. Mande lembranças à patroa e nas crianças.

Caminhava entre o emaranhado de cipós que separavam o espaço-porto do porto fluvial quando reparei em um som de passos atrás de mim.

Quando se caminha só. O único som que se houve são os ecos de seus próprios passos. Lembrei-me do ensinamento do Mestre Javali.

Virei-me e vi o vulto se escondendo atrás de uma árvore. Uma árvore fina que me deixou ver os panos avermelhados que arrastavam-se no chão.

- Ata-Ïsis!   

A pequena se atirou ao chão, aos prantos.

-Eu tive que vir com você... Não agüentava mais. Aqueles olhares...

- Bem, você ao menos conseguiu se esconder no bagageiro. Talvez não seja tão medrosa e inútil como imaginei.

Mas que diabo, pensei. Como ela está aqui. É o MEU sonho e eu o estou escrevendo. Isso não estava escrito. Foi quando eu ouvi a Velha Voz.

-Você pensa que é o único sonhador? O único que está escrevendo esta história?
Não lhe dei atenção. Caminhamos cerca de uma hora pela mata, sem trocarmos uma palavra. Ela vinha logo atrás de mim, tropeçando em tocos de paus e pedaços de barro seco no caminho.
Chegamos à travessia. Deveria cruzar o rio em um pequeno bote de madeira, todo rachado.

- Que bote pequeno! , reparou Ata-Ïsis. Só dá para um.

- É, só tem lugar para um. E esse um sou eu. Você não devia estar aqui. Esta a viagem da minha libertação. Você é uma intrusa, uma viajante clandestina. Devia te deixar aqui.  

- Calma, é só fazer duas viagens.

- Não há tempo para duas viagens. Vamos embarcar os dois.

- Eu tenho medo de me afogar. Não sei nadar.

- Nossa, que apropriado! Uma ribeirinha que não sabe nadar. O que mais você NÃO sabe fazer?

Tentamos embarcar os dois, mas o bote não saia do lugar, pedi a Ata-Ïsis que empurrasse com os pés mas o bote não se movia. Pulei então na água e o empurrei mas quando tentei novamente embarcar o bote fez água e quase virou, caí na água molhando minhas roupas. Foi quando notei que havia molhado também meu comunicador.

Nesta altura, meu corpo sentiu uma distonia. A parte de cima do corpo, quente e seca, estava nervosa, irritada, furiosa. Enquanto isso, da cintura para baixo do corpo, onde estava molhado, encontrava-me relaxado e feliz. Estranhamente confiante tive vontade de mergulhar no rio, apesar das expressas advertências de feras que habitavam as profundas águas negras do rio.

Atirei o comunicador, no meio do rio e mergulhei. Senti-me feliz, liberto de tudo. Nadei até a outra margem sem dificuldade.

- O seu comunicador ! Disse  surpresa Ata –Ïsis. Sei que você pode conseguir outro, mas e os seus contatos?
- A maioria políticos e periguetes. Não vou precisar de nenhum deles para onde vou.

Mas na verdade sentia-me um idiota por ter atirado o comunicador no meio do rio. Por ter me enfurecido. Sentia-me ainda mais idiota por estar levando, contra a minha vontade, um Cuco, que não sabia sequer para aonde queria ir. Mas era ainda mais insuportável saber que aquela menina havia conseguido embarcar naquela viagem e agora, feito também ela a travessia.  
*Aluado: Que bebeu aluá, bebida alcoólica feita a partir da casaca do abacaxi. Embriagado, tonto. 

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