Leandro Altheman
Neste (nem tão) breve ensaio, pretendo discorrer sobre as principais
religiões retratadas na obra ficcional de George R.R. Martin e a partir do simbolismo
presente no seu universo fantástico, demonstrar que os elementos revelados
encontram-se em algumas das religiões do passado e do presente da humanidade.
O tema atraiu-me a partir de quando percebi que boa parte da
trama se desenrola a partir da cosmovisão de cada personagem. Ou seja, em sua
obra a religião e a religiosidade, ou a falta dela desempenham um papel
fundamental a determinar as respostas de cada personagem-narrador. Esta percepção
pode ajudar-nos a entender as diferenças fundamentais entre algumas das
principais cosmovisões em nosso próprio mundo.
Começaremos pela religião mais difundida em Westeros: Os
Sete.
Os Sete
Os sete nos são
incrivelmente familiares e talvez o porque disto esteja claro para alguns de
seus leitores, mas não para todos.
Os Sete representam os principais arquétipos que regem a
humanidade. Podemos dizer que esta fé simboliza uma segunda etapa na cosmovisão
da humanidade. Precedida pelo pan-teísmo natural (a qual falaremos logo
adiante) e sucedida pelo monoteísmo dualista, a religião arquetípica foi quem dominou
a cosmovisão da antiguidade.
Egípcios a ensaiaram sob a forma seu deuses antropomórficos,
inicialmente espíritos tutelares ligados à geografia do próprio Nilo, a medida
em que se organizava o seu espaço político, seus deuses também se organizavam
para dar forma à cosmovisão não mais de um grupo, povoado ou cidade, mas de uma
nação. Com o tempo, cada um destes deuses passou a desempenhar um papel arquetípico
representando os ciclos de vida, morte e renascimento, assistido pelo povo
egípcio às margens do Nilo e reinterpretado como parte da encenação cósmica do
próprio universo.
Processo semelhante se assistiu no lado asiático do
crescente fértil. A medida em que cidades povos e reinos eram integrados, seus espíritos tutelares
passaram a constituir um panteão, dando assim uma fé comum aos povos da
mesopotâmia. Se é correto afirmar que um império é feito com armas, é tão
correto afirmar que o que mantém coeso é a sua cosmovisão, destinada a amoldar
os anseios, preocupações e destinos de cada indivíduo ao destino de sua própria
nação.
Mais foi com os gregos que os deuses ganharam forma e conteúdo
arquetípicos que nos são mais familiares. A cosmovisão engendrada pelo mundo
helênico e adotada pelos romanos permanece viva em nosso século, sem que muitas
vezes nos demos conta disso. A trindade Zeus-Poseidon-Hades ainda é reverenciada
ainda que de forma distinta. Ares continua a tumultuar os destinos da
humanidade, mesmo que a ordem de “ataque preventivo” parta do mais pio dos
cristãos. Felizmente, Afrodite continua também a provocar os suspiros de homens
e mulheres apaixonados e Atena, a nos inspirar a sua sabedoria. Sem é claro esquecer
do veloz Hermes que ganha asas digitais para levar as mensagens de um lado a
outro do planeta e ainda hoje é reverenciado por comerciantes e contadores sem que
se deem conta disso.
George R.R. Martin captou a essência fundamental do politeísmo
arquetípico e os representou maravilhosamente sob a forma dos Sete.
O Pai, A Mãe, O Guerreiro, O Ferreiro, A Velha, A Donzela e
finalmente O Estranho capta
m os movimentos essenciais da alma humana quando
ele se volta ao desconhecido em busca de justiça, misericórdia, força (para lutar ou
para trabalhar), sabedoria, amor...
E como uma verdadeira
fé arquetípica, também não deixa de fora aquilo que não se compreende e nem se
deseja, mas que faz parte da realidade: O Estranho.
Digo sem medo de errar que uma religião que contemple o
estranho gosto da morte, a risada louca dos deuses, o caos incompreensível aos
olhos humanos tende a ser uma religião mais honesta aos seus seguidores. Uma
religião que não torne anátema o que não está nos planos do homem cria uma psique
mais sadia, mais propensa a aceitar que nem tudo se é como se deseja, que
nossas vontades não são maiores que os “caprichos”dos deuses e que apesar de
encontrarmos a ordem em abundância no universo, o caos também é igualmente
abundante. Se existe uma divindade, que melhor maneira de explicar as pernas
tortas, os olhos vesgos, a doença e a loucura do que aceitar que loucura
representa também um aspecto da divindade?
Os septões mais esclarecidos são unânimes em afirmar que o
politeísmo da fé nos Sete é apenas aparente em que em sua essência é na
verdade, uma fé monoteísta. Nada representa isto melhor do que o arco-íris. A luz
de um único sol se divide em sete raios coloridos cada um com uma qualidade
específica, mas ainda assim, ligados intrinsecamente à luz primordial que os
gerou. Por esta razão as coroas dos septões são feitas de cristal, uma
referência à luz que se decompõe no espectro de cores que se traduz na diversidade
da realidade, sem jamais negar a existência de uma única fonte primeva que a
tudo criou.
Este pressuposto de um Criador primordial que se manifesta
na diversidade arquetípica está viva e presente nos cultos afro-brasileiros aos
Orixás. Uma mente despreparada pode enxergar na umbanda e no candomblé traços do
politeísmo pagão Greco-romano, suplantado, ao menos parcialmente, pela fé
aparentemente mais simples e esclarecida, do monoteísmo abraâmico.
Contudo, assim como nos Sete de Westeros, o politeísmo dos
Orixás é apenas aparente. Os sacerdotes dos Orixás sabem e ensinam que tudo
partiu de um Criador Uno, e que este mesmo Uno,
delegou sua própria divindade a seres por ele criados, seres divinosem sua essência
cada qual irradiando um brilho próprio, uma qualidade específica a quem a humanidade recorre em temos de
necessidades também específicas (justiça, amor, força, sabedorias, etc).
Na umbanda, esta referência aos sete raios do arco-iris é
tão evidente que também sete é o seu número. Sete são as suas linhas: Oxalá,
Iemanjá, Xangô, Ogum, Oxossi, Iansã e Exu (esta divisão que varia conforme o
autor, para melhores esclarecimentos, sugiro a leitura da obra de umbanda
exotérica de Rubens Sarraceni). O Criador recebe muitos nomes, sendo o mais
usual Olodumaré. Este deve ser
reverenciado, mas contudo, permanece inalcansável diretamente, somente por meio
de seu Orixá, um filho, pode conhecer a vontade do Criador Supremo.
Já no candomblé esta categorização não é tão simples, e é
até difícil se afirmar quantos Orixás existem, ainda que os mesmos Sete sejam
os reverenciados, surgem outros tão importantes quanto: Oxum, Omulu e Obaluaê, Obá,
Iroco, Ifá, Lodum Edé, e tantos outros quanto sejam possíveis representar
arquétipos humanos e da natureza.
Se podemos dizer que o culto Orixá é um politeísmo aparente,
que revela em seu âmago, um monoteísmo, algo semelhante pode ser dito do
monoteísmo abrâamico. Seu aparente monoteísmo não nega a existência de
divindades que descendem do Criador primordial.
Tais divindades estão representadas como os Elohim – seres divinos.
A cabala que é parte integrante deste conhecimento explica que
o Criador primordial permanece em um lugar fora do tempo e do espaço manifesto,
pois é anterior e ulterior a estes. É chamado de o “Imanifesto” (a cosmogonia
Tupi-Guarani também se refere de modo semelhante ao Criador primordial como a
essência que dá forma e conteúdo a tudo, não tendo porém ele próprio, forma ou
conteúdo – ler mais em Tupã Tenondé – Kaká Verá Jecupé).
Para os cabalistas, contudo, o Criador inalcansável pode ser
percebido através de suas múltiplas manifestações, representado em sua diversidade
pela árvore da vida.
(Princípio semelhante se encontra no politeísmo monista
hindu)
Ou seja, para os sacerdotes da cabala, Deus é Um, mas presente
em múltiplas manifestações divinas. Esta mesma questão pode ser colocada a
partir da frase atribuída a Jesus na cruz: Eli,
Eli lama sabatsani – mormente traduzida por Senhor, senhor, porque me abandonaste – Eli, contudo é o plural de El – senhor , ou seja, o mais correto
seria Senhores, senhores, porque me
abandonastes. Os estudiosos da bíblia diriam que trata-se de um plural majestático que equivale dizer que o Deus Unitário é
tão imenso, que não cabe em apenas um.
Seja como for, a fé dos Sete representa muito bem os arquétipos
humanos responsáveis pela qual se dá a interpretação do universo. Se Carl Gustav
Jung estiver correto, a clareza com que cada um lida com estes arquétipos em
sua vida é que determinará o grau de saúde da psique e de realização do
indivíduo.
Caramba que análise bacana... Você escrevendo sobre a Cabala me leva automaticamente a pensar no Deus de muitas faces que no livro é descrito quase que da mesma maneira que você escreveu, "o Criador inalcansável pode ser percebido através de suas múltiplas manifestações", cultado pelos Homens sem rosto na Casa do Preto e Branco...
ResponderExcluirGrato Anne. Ainda estou devendo uma análise do xamanismo pan-teístico da antiga religião. O Afogado e o Deus de muitas faces ficariam de fora... se quiser escrever algo a respeito, publico com prazer. Abraços
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