E assim terminava nossa história.
Deixava na boca um gosto amargo, mais amargo que a
cloroquina de mil malárias. E eu, na cama, semi-paralisado pelo fígado inchado,
ainda somente meio-recuperado da última delas.
Mas de todas as dores e paralisias a que mais me incomodava,
já não estava ali. A dor da não-dor, a dor de não sentir dor, ou amor, ou
rancor, ou seja lá o que for.
Acordei sem sentir as minhas mãos. Travadas, em resposta ao
fígado, travado. O corpo doído de um milhão de surras levadas em um milhão de vidas.
Tentei me por de pé, e percebi que era como rodar um barril em um convés de navio de carga.
Inchado.
Mas havia algo de doce neste quase-morte. Algo de quente na
faca fria que agora sentia cortar-me por dentro do peito, bem no meio da
titela.
Uma faca que cortava os pulsos da mormidez morimbunda do meu
não sentir. Uma faca que cortava minha vida, separando-me de vez do
não-crescido, do não maduro, do não vivido.
Mas sabia que não morreria, não desta vez.
Ata Isis havia me amado como nenhuma outra mulher. Podia
senti-lo melhor do que as pontas de meus dedos.
Havia algo de sacrifício em seu amor. Jamais pedira isso.
Jamais pedira que derramasse sangue ou mesmo lágrimas em meu nome. Mas ela o
fez. Derramou correntes de água e sangue em nome de um amor que não fui capaz
de sentir.
Ou talvez tenha sentido. Claro que não no meu coração. Um coração
juramentado ao Vento tinha suas quatro partes preenchidas com os quatro ventos.
Leste, Sul, Oeste e Norte. Assim o era.
Mas Ata Isis, na generosidade de seus amor sem limites, sem
fronteiras, cedera também seu próprio
coração, para que pudesse através dela, sentir um amor por mim, da qual eu
mesmo era incapaz.
Através de seu coração sentira o seu amor por mim e pude bebê-lo
em cálice transbordante, saciando uma sede que desconhecera até então.
Através de seu coração ouvia o seu grito, o grito de uma
geração carente de amor. Carente como eu próprio fora em meu tempo, mas que ao
invés de silenciar, fazia tremer as estrelas do céu com seu clamor, até ver
elas também chorar.
Não, eu não pude suportar o grito e a dor de quem na travessia
é deixado para trás. Este havia sido o meu mal, o meu engano e o preço a pagar
agora era alto.
E através de seu coração, não do meu, agora eu suportava a
sua dor, a dor da separação de quem chega ao fim da caminhada. A dor de quem a
descobriu como a uma criança medrosa e agora a deixava, como mulher. A dor de
perceber que o caminho acaba, mas não o amor.
Ah! Quantas boas risadas rimos juntos nos caminhos entre Korou-
Rá e Nova Constelação. Quantas boas brincadeiras nos acampamentos após as
longas e cansativas viagens através das dimensões.
Mas, apesar de todas a dor que Ata Isis me emprestava para
que eu pudesse sentir. Algo em mim acreditava, ou queria acreditar que havia
valido a pena.
E o piado da coruja que seguia em seu ombro, me dera
certeza, de que pesar de tudo, tudo havia valido a pena.
Que melhor companhia podia ter ela que a coruja? De olhos
bem abertos, despertos na escuridão da madrugada.
Pela noite fria ela caminhava. A lua cheia prateava a
névoa, fazendo crer que estava próximo ao amanhecer.
Para leste, ela agora caminhava, para o nascente do Sol, que um dia certamente iria dourar a sua vida. Mas não nesta noite. Nesta noite era ela toda sombra. E prata.
Para leste, ela agora caminhava, para o nascente do Sol, que um dia certamente iria dourar a sua vida. Mas não nesta noite. Nesta noite era ela toda sombra. E prata.
E as névoas da noite abriam o caminho, em reverência aos
seus olhos de coruja e através dela, começava a enxergar. O início.
Eu, do meu lado era todo poente. E no deserto vermelho em
que caminhava extenuado, piava bem alto águia-dourada, assistindo aos meus
passos cansados e gritando lá do alto quando cá em baixo, eu tropeçava.
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