Cosmovisão Andina transformando-se em proposta política
A Bolívia está em vias da aprovar a primeira legislação mundial dando à natureza direitos iguais aos dos humanos.  A Lei da Mãe Terra, que conta com apoio de políticos e grupos sociais, é  uma enorme redefinição de direitos. Ela qualifica os ricos depósitos  minerais do país como "bençãos", e se espera que promova uma mudança  importante na conservação e em medidas sociais para a redução da  poluição e controle da indústria, em um país que tem sido há anos  destruído por conta de seus recursos.
A Lei da Mãe Terra vai estabelecer 11 direitos para a natureza,  incluindo o direito à vida, o direito da continuação de ciclos e  processos vitais livres de alteração humana, o direito a água e ar  limpos, o direito ao equilíbrio, e o direito de não ter estruturas  celulares modificadas ou alteradas geneticamente.
Ela também vai assegurar o direito de o país "não ser afetado por  megaestruturas e projetos de desenvolvimento que afetem o equilíbrio de  ecossistemas e as comunidades locais".
Esta mudança significa a ressurgência da visão de um mundo indígena,  andino, que coloca a deusa da Terra e do ambiente, Pachamama, no centro  de toda a vida. Esta visão considera iguais os direitos humanos
e de todas as outras entidades. A Bolivia sofre há tempos sérios  problema ambientais com a mineração de alumínio, prata, ouro e outras  matérias primas.
Em uma entrevista, o ministro das Relações Exteriores da Bolívia e  especialista em cosmovisão andina, David Choquehuanca, explica os  principais detalhes desta proposta que situa a vida e a natureza como  eixos centrais.
"Queremos voltar a Viver Bem, o que significa que agora começamos a  valorizar a nossa história, a nossa música, a nossa vestimenta, a nossa  cultura, o nosso idioma, os nossos recursos naturais, e, depois de  valorizar, decidimos recuperar tudo o que é nosso, voltar a ser o que  éramos”.
O artigo 8 da CPE estabelece que: “O Estado assume e promove como  princípios ético-morais da sociedade plural: ama qhilla, ama llulla, ama  suwa (não sejas preguiçoso, não sejas mentiroso nem ladrão), suma  qamaña (viver bem), ñandereko (vida harmoniosa), teko kavi (vida boa),  ivi maraei (terra sem males) y qhapaj ñan (caminho ou vida nobre).
O Chanceler marcou distância com o socialismo e mais ainda com o  capitalismo. O primeiro busca satisfazer as necessidades humanas e para o  capitalismo o mais importante é o dinheiro e a mais-valia.
De acordo com David Choquehuanca, o Viver Bem é um processo que está apenas começando e que pouco a pouco irá se massificando.
“Para os que pertencem à cultura da vida, o mais importante não é o  dinheiro nem o ouro, nem o ser humano, porque ele está em último lugar. O mais importante são os rios, o ar, as montanhas, as estrelas, as formigas, as borboletas (...) O ser humano está em último lugar, para nós o mais importante é a vida”.
Estas são as características que pouco a pouco serão implementadas no novo Estado Plurinacional da Bolívia:
Priorizar a vida
Viver Bem é buscar a vivência em comunidade, onde todos os integrantes se preocupam com todos.
O mais importante não é o ser humano (como afirma o socialismo) nem o  dinheiro (como postula o capitalismo), mas a vida. Pretende-se buscar  uma vida mais simples. Que seja o caminho da harmonia com a natureza e a  vida, com o objetivo de salvar o planeta e dar a prioridade à  humanidade.
Respeitar a mulher
Viver Bem é respeitar a mulher, porque ela representa a Pachamama, que é  a Mãe Terra que tem a capacidade de dar vida e de cuidar de todos os  seus frutos.
Por estas razões, dentro das comunidades, a mulher é valorizada e está  presente em todas as atividades orientadas à vida, à criação, à educação  e à revitalização da cultura. Os moradores das comunidades indígenas  valorizam a mulher como base da organização social, porque transmitem  aos seus filhos os saberes de sua cultura.
Viver Bem e NÃO melhor
Viver Bem é diferente de viver melhor, o que se relaciona com o capitalismo.
Para a nova doutrina do Estado Plurinacional, viver melhor se traduz em  egoísmo, desinteresse pelos outros, individualismo e pensar somente no  lucro. Considera que a doutrina capitalista impulsiona a exploração das  pessoas para a concentração de riquezas em poucas mãos, ao passo que o  Viver Bem aponta para uma vida simples, que mantém uma produção  equilibrada.
Respeitar as diferenças
Viver Bem é respeitar o outro, saber escutar todo aquele que deseja falar, sem discriminação ou qualquer tipo de submissão.
Não se postula a tolerância, mas o respeito, já que, mesmo que cada  cultura ou região tenha uma forma diferente de pensar, para viver bem e  em harmonia é necessário respeitar essas diferenças. Esta doutrina  inclui todos os seres que habitam o planeta, como os animais e as  plantas.
Escutar os anciãos
Viver Bem é ler as rugas dos avós para poder retomar o caminho.
O Chanceler destaca que uma das principais fontes de aprendizagem são os  anciãos das comunidades, que guardam histórias e costumes que com o  passar dos anos vão se perdendo. “Nossos avós são bibliotecas  ambulantes, assim que devemos aprender com eles”, menciona. Portanto, os  anciãos são respeitados e consultados nas comunidades indígenas do  país.
Viver em complementaridade
Viver Bem é priorizar a complementaridade, que postula que todos os  seres que vivem no planeta se complementam uns com os outros.
Nas comunidades, a criança se complementa com o avô, o homem com a  mulher, etc. Um exemplo colocado pelo Chancelerespecifica que o homem  não deve matar as plantas, porque elas complementam a sua existência e  ajudam para que sobreviva.
Aproveitar a água
Viver Bem é distribuir racionalmente a água e aproveitá-la de maneira correta.
O Ministro das Relações Exteriores comenta que a água é o leite dos seres que habitam o planeta. “Temos muitas coisas, recursos
naturais, água e, por exemplo, a França não tem a quantidade de água nem  a quantidade de terra que há em nosso país, mas vemos que não há nenhum  Movimento Sem Terra, assim que devemos valorizar o que temos e  preservá-lo o melhor possível, isso é Viver Bem”.
Equilíbrio com a natureza
Viver Bem é levar uma vida equilibrada com todos os seres dentro de uma comunidade.
Assim como a democracia, a justiça também é considerada excludente, de  acordo com o chanceler David Choquehuanca, porque só leva em conta as  pessoas dentro de uma comunidade e não o que é mais importante: a vida e  a harmonia do ser humano com a natureza. É por isso que Viver Bem  aspira a ter uma sociedade com equidade e sem exclusão.
Priorizar direitos cósmicos
Viver Bem é dar prioridade aos direitos cósmicos antes que aos Direitos Humanos.
Quando o Governo fala de mudança climática, também se refere aos  direitos cósmicos, garante o Ministro das Relações Exteriores. “Por  isso, o Presidente (Evo Morales) diz que vai ser mais importante falar  sobre os direitos da Mãe Terra do que falar sobre os direitos humanos”.
Saber comer
Viver Bem é saber alimentar-se, saber combinar os alimentos adequados a  partir das estações do ano (alimentos de acordo com a época).
O ministro das Relações Exteriores, David Choquehuanca, explica que esta  consigna deve se reger com base na prática dos ancestrais que se  alimentam com um determinado produto durante toda a estação. Comenta que  alimentar-se bem garante boa saúde.
Saber beber
Viver Bem é saber beber álcool com moderação.
Nas comunidades indígenas cada festa tem um significado e o álcool está  presente na celebração, mas é consumido sem exageros ou ofender alguém.  “Temos que saber beber; em nossas comunidades tínhamos verdadeiras  festas que estavam relacionadas com as estações do ano. Não é ir a uma  cantina e se envenenar com cerveja e matar os neurônios”.
Saber dançar
Viver Bem é saber dançar, não simplesmente saber bailar.
A dança se relaciona com alguns fatos concretos, como a colheita ou o  plantio. As comunidades continuam honrando com dança e música a  Pachamama, principalmente em épocas agrícolas; entretanto, nas cidades  as danças originárias são consideradas expressões folclóricas. Na nova  doutrina se renovará o verdadeiro significado do dançar.
Saber trabalhar
Viver Bem é considerar o trabalho como festa.
“O trabalho para nós é felicidade”, disse o chanceler David  Choquehuanca, que recalca que ao contrário do capitalismo onde se paga  para trabalhar, no novo modelo do Estado Plurinacional, se retoma o  pensamento ancestral de considerar o trabalho como festa. É uma  arma de  crescimento, é por isso que nas culturas indígenas se trabalha desde  pequeno.
Retomar o Abya Yala
Viver bem é promover a união de todos os povos em uma grande família.
Para o Chanceler, isto implica em que todas as regiões do país se  reconstituam no que ancestralmente se considerou como uma grande  comunidade. “Isto tem que se estender a todos os países. É por isso que  vemos bons sinais de presidentes que estão na tarefa de unir todos os  povos e voltar a ser o Abya Yala que fomos”.
Reincorporar a agricultura
Viver Bem é reincorporar a agricultura às comunidades.
Parte desta doutrina do novo Estado Plurinacional é recuperar as formas  de vivência em comunidade, como o trabalho na terra, cultivando produtos  para cobrir as necessidades básicas para a subsistência. Neste ponto se  fará a devolução de terras às comunidades, de maneira que se produzam  as economias locais.
Saber se comunicar
Viver Bem é saber se comunicar.
No novo Estado Pluninacional se pretende retomar a comunicação que existia nas comunidades ancestrais.
O diálogo é o resultado desta boa comunicação mencionada pelo Chanceler.  “Temos que nos comunicar como antes os nossos pais o faziam, e  resolviam os problemas sem que se apresentassem conflitos, não temos que  perder isso”.
O Viver Bem não é “viver melhor”, como propõe o capitalismo 
Entre os preceitos estabelecidos pelo novo modelo do Estado  Plurinacional, figuram o controle social, a reciprocidade e o respeito à  mulher e ao idoso.
Controle social
Viver Bem é realizar um controle obrigatório entre os habitantes de uma comunidade.
“Este controle é diferente do proposto pela Participação Popular, que  foi rechaçado (por algumas comunidades) porque reduz a verdadeira  participação das pessoas”, disse o chanceler Choquehuanca. Nos tempos  ancestrais, “todos se encarregavam de controlar as funções que suas  principais autoridades realizavam”.
Trabalhar em reciprocidade
Viver Bem é retomar a reciprocidade do trabalho nas comunidades.
Nos povos indígenas esta prática se denomina ayni, que não é mais do que  devolver em trabalho a ajuda prestada por uma família em uma atividade  agrícola, como o plantio ou a colheita. “É mais um dos princípios ou  códigos que garantirão o equilíbrio nas grandes secas”, explica o  Ministro das Relações Exteriores.
Não roubar e não mentir
Viver Bem é basear-se no ama suwa e ama qhilla (não roubar e não mentir, em quéchua).
É um dos preceitos que também estão incluídos na nova Constituição  Política do Estado e que o Presidente prometeu respeitar. Do mesmo modo,  para o Chanceler é fundamental que dentro das comunidades se respeitem  estes princípios para conseguir o bem-estar e confiança em seus  habitantes. “Todos são códigos que devem ser seguidos para que  consigamos viver bem no futuro”.
Proteger as sementes
Viver Bem é proteger e guardar as sementes para que no futuro se evite o uso de produtos transgênicos.
O livro Viver Bem, como resposta à crise global, da Chancelaria da  Bolívia, especifica que uma das  características deste novo modelo é  preservar a riqueza agrícola ancestral com a criação de bancos de  sementes que evitem a utilização de transgênicos para incrementar a  produtividade, porque se diz que esta mistura com químicos prejudica e  acaba com as sementes milenares.
Recuperar recursos
Viver Bem é recuperar a riqueza natural do país e permitir que todos se beneficiem desta de maneira equilibrada e equitativa.
A finalidade da doutrina do Viver Bem também é a de nacionalizar e  recuperar as empresas estratégicas do país no marco do equilíbrio e da  convivência entre o ser humano e a natureza em contraposição à  exploração irracional dos recursos naturais. “Deve-se,  sobretudo,  priorizar a natureza”, acrescentou o Chanceler.
Exercer a soberania
Viver Bem é construir, a partir das comunidades, o exercício da soberania no país.
Isto significa, segundo o livro Viver Bem, como resposta à crise global,  que se chegará a uma soberania por meio do consenso comunal que defina e  construa a unidade e a responsabilidade a favor do bem comum, sem que  nada falte. Nesse marco, se reconstruirão as comunidades e nações para  construir uma sociedade soberana que será administrada em harmonia com o  indivíduo, a natureza e o cosmos.
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