sábado, 25 de fevereiro de 2012

Memorias de um alagado


No ano de 1980 vivia em Porto Alegre-RS. Naquele ano, a cidade foi surpreendida com uma das maiores alagações de sua historia ate então.

Naquela época atribuiu-se a alagação a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu. Estudiosos diziam que o aumento na superfície alagada teria aumentado também o volume de agua evaporada e por conseguinte, as precipitações “diluvianas” que se seguiram.

Aquele havia sido um dia quente de verão. Eu e meu irmão brincávamos em uma destas piscinas de lona para nos aliviar do calor. Morávamos em um bairro de classe media em Porto Alegre. Meu pai viajara para Santa Catarina a negócios enquanto minha mãe ficara em casa cuidando de mim e de meu irmão, com o auxilio de Vera, uma jovem que morava conosco.

A noite após exaustos de tanto brincar, adormecemos em frente a TV e ao invés de sermos colocados em nossas camas, fomos colocados juntos na cama de minha mãe.Um pequeno detalhe pode ter nos salvado a vida.

Lembro-me apenas de ser carregado, sonolento por Vera as pressas, para fora de casa. Caímos os dois. Vera escorregou no piso molhado e fomos ambos para o chão. Lembro-me da pancada forte em minha cabeça que me despertou por completo com uma grande dor.

Fomos levados para a casa ao lado. Nossa vizinha era Dona Percília, uma gaúcha do “pé rachado” (acho que ela era de Bagé ou São Borja) com forte sotaque, gente de raiz.

Sua casa, muito mais simples do que a nossa, era de madeira, erguida sobre palafitas (ou barrotes, como se diz no Acre) e não foi afetada pela enxurrada. A agua simplesmente passou por debaixo de sua casa, sem nenhum prejuízo.

Fomos bem cuidados em sua casa, sentia uma forte dor de cabeça devido a queda, mas a situação de Vera era ainda pior.

No dia seguinte, a agua como veio, foi, deixando apenas rastros de seu estrago. Rastros impressionantes. Não fora uma alagação como a que assistimos em Rio Branco este ano. Foi mais como uma enxurrada, uma tromba d’água que arrasta tudo em seu caminho e vai embora.

Nosso muro de alvenaria fora derrubada pela força das águas. Uma botija de gás arrastada por centenas de metros do outro lado da rua foi parar no nosso quintal. A armação metálica de nossa piscina ficou totalmente retorcida.

Do lado de dentro, muita lama e o susto: o armário havia caído sobre a cama que normalmente dormíamos, mas por obra do destino ou acaso, não naquela noite.

Do outro lado da rua, um estacionamento foi invadido pelas águas e os carros lançados uns com os outros. No dia seguinte assistimos curiosos as imagens da destruição por toda Porto Alegre. Corpo de Bombeiros ou prefeitura não estavam preparados para o desastre e as ações demoraram a acontecer.

Em nossa casa, de todas as pessoas, Vera foi a mais afetada e passou a ter dores de cabeça constantes após a queda. Voltando ao normal somente após meses de tratamento.

Em conversas, lembramos ate hoje do que aconteceu, e se pudemos tirar um lição disso tudo, certamente foi o respeito que as forças da natureza incutiram sobre nós, de maneira indelével. Confronta-la quase nunca é a melhora saída. Conhece-la, respeita-la e humildemente se adaptar a ela parece ser um caminho mais simples e mais eficaz de convivência.

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