quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Dançarino das Teias da Realidade

Ato 1 - Kêne

Estou na aldeia Nova Esperança no Alto Rio Gregório. Encontro com meu velho pajé Yawá.

- E aí, meu amigo, quanto tempo !

- Pois é Yawá, quase dois anos!

- E qual é a novidade?

- A novidade é que eu me separei.

- Graças a Deus! Diz ele, erguendo as mãos aos céus.

Neste momento eu penso que ou ele não entendeu o que eu disse, ou em sua sabedoria de Pajé, achou melhor que fosse assim.

- Eu também me separei. Minha mulher era querendo mandar em mim o tempo todo... eu sou marido dela, não sou filho...

É, ele entendeu mesmo.

***

Estamos reunidos à noite para a rodada de Uni (ayahuasca).

Tomo a minha dose, encostado na parede vejo o poço fundo em que minha alma se meteu. Escuridão. Vontade de desistir de tudo, ou pelo menos, de esperar a força baixar, tomar um copo de leite e ir dormir. Afinal quem é que precisa do mundo espiritual para viver?

Havia um peso sobre minhas costas. Em meu coração, um desejo de afundar de novo na angústia, na solidão, no medo, ansiedade e depressão. Velhos conhecidos. Poderia dormir e acordar com eles. Sem graça, nem mistério. Seguro apenas de que seguindo com eles veria sempre as mesmas paisagens. Mesmo no fundo daquele poço, contemplei de longe uma figura. Não sei se era um anjo com suas asas abertas ou um índio com o seu cocar. Sua presença emanava paz e alegria, força e jovialidade. Eu queria estar na sua presença.

Lembro-me das palavras de Yawá durante o samakei.

- Você pede assim: -Estrela que eu te vi um dia, me dá aquela esperança.

E foi assim, reconhecendo em mim não o herói que atravessa montanhas de motocicleta, nem o santo que aspira à perfeição, mas tão somente ao homem que deseja ser feliz, que a vi novamente: a estrela.

Os olhos de shavorã estavam de novo sobre mim, como sempre estiveram . Só aguardando que eu erguesse minha face para contemplá-los novamente.

Fui subindo e de repente aquele peso todo havia ficado para trás. Estava diante do anjo, ou índio que cantava sem parar. De sua boca jorravam kenês que tomavam forma e cor e preenchiam o espaço do lugar.

Os primeiros kenês desceram como folhas de outono ao sabor do vento. Eram vermelhos, laranjas e amarelos. Forraram o chão onde estavam os nossos pés.

Depois vieram outros que nasciam de cima para baixo, como penas multicoloridas formando conjuntos brilhantes e vivos sobre nossas cabeças. Eram amarelos, verdes e azuis.

Em seguida vieram as jibóias, dançando como ás águas dos rios e destes, desdobravam-se outros kenês que saíam de suas bocas como ideogramas. Eram verde-escuros, beges, negros e marrons.

Por último, desenrolaram-se por todo o ambiente Kenês que eram brancos, prata e vermelhos. Lembravam linotipos de uma gráfica que silenciosamente, imprimia no próprio ar pergaminhos que se desenrolavam sobre nós em uma velocidade estonteante. Foi como se toda a Biblioteca de Alexandria ganhasse vida e todos os seus papiros resolvessem abrir-se diante de nós.

Neste momento, vi que neste caminho, a humildade não é um enfeite que se ostenta a fim se demonstrar humanidade, mas artigo indispensável no kit de sobrevivência na selva do conhecimento.

***

* Dançarinos das Teias da Realidade é um pequeno ensaio em quatro atos, da qual o presente ato é o primeiro.

Ilustrações: 1- Arte em cestaria indígena traduz o conceito proposto pelo filósofo Immanuel Kant de que a geometria é inata ao ser humana. Hhipótese comprovada a partir de estudos antropológicos com crianças do povo Munducuru na Amazônia Brasileira .

2-Desenho do artista plástico e xamã ayahuasqueiro pucalpino Pablo Amaringo. Extraído de texto do escritor e deputado estadual Moisés Diniz (PCdoB), em resposta ao artigo difamatório produzido pela revista Veja por ocasião da morte do cartunista Glauco Vilas Boas.

3- Pintura de Loyver Yui López, 2007. Citado no artigo "Beleza" da antropóloga Luiza Belaunde, também sobre o significado do Kenê.

Um comentário:

  1. Lindo ensaio Leandro! Estou aguardando os outros, rsrsrsrs

    Bj
    Ane

    ResponderExcluir